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Responsabilidade civil dos agentes públicos federais nos EUA segundo a Federal Tort Claims Act (FTCA): o caso das Ginastas dos EUA X FBI

Responsabilidade civil dos agentes públicos federais nos EUA segundo a Federal Tort Claims Act (FTCA): o caso das Ginastas dos EUA X FBI
Thaís G. Pascoaloto Venturi
segunda-feira, 7 de novembro de 2022

O caso

O escândalo envolvendo acusações de abusos sexuais que vitimaram dezenas de atletas da equipe de ginástica olímpica dos EUA repercutiu em todo o mundo quando o principal médico do grupo, Larry Nassar – que atuou por mais de 18 anos no Comitê Olímpico, foi denunciado e posteriormente condenado pela prática de pornografia infantil.

Atualmente, Larry Nassar está cumprindo pena de 60 anos de reclusão em um presídio federal, além de ainda responder por diversas acusações em âmbito estadual. Ele se declarou culpado de sete acusações de conduta sexual criminosa contra ginastas que estavam sob seus cuidados, quando trabalhou para a Michigan State University (entre 1997 a 2016), tendo sido já condenado, em 2018, a outras penas de 175 e 125 anos, por dois tribunais do Estado do Michigan.1

Em julho de 2015, o presidente e CEO da USA Gymnastics (USAG), Stephen Penny, formalizou os relatos de abusos sexuais ao escritório do FBI em Indianápolis, momento em que forneceu aos agentes federais os nomes de três das vítimas dispostas a serem entrevistadas.

Nada obstante, o agente especial W. Jay Abbott, representante do FBI, não instaurou formalmente uma investigação, tendo entrevistado apenas uma testemunha meses depois da denúncia inicial, não tendo documentado formalmente a referida entrevista em um relatório oficial conhecido como “302”, até fevereiro de 2017 – bem depois que o FBI prendeu Nassar sob a acusação de posse de imagens de sexo explícito infantil, em dezembro de 2016.

Quando o único depoimento colhido pelo FBI foi finalmente documentado em 2017 (por um agente especial não identificado), o relatório da agência federal de investigação foi preenchido com informações imprecisas ou falsas, não tendo sido compartilhado com outras agências de investigação locais ou estaduais.

O próprio FBI se manifestou posteriormente sobre o caso, classificando o comportamento do agente federal como ‘terrível’. Segundo a agência, W. Jay Abbott, que se aposentou em 2018, violou a política de conflito de interesses do FBI ao discutir seu trabalho com o Comitê Olímpico dos Estados Unidos (USOPC) enquanto estava envolvido na investigação sobre os abusos de Nassar. Nem Abbott, nem o outro agente especial de supervisão não identificado que atuou no caso Nassar, foram processados por suas ações.

Comitê Judiciário no Senado (Committee on the Judiciary)

Em razão da gravidade dos fatos, foi criado um Comitê Judiciário do Senado para investigar o caso e apurar os motivos pelos quais o FBI não investigou mais cedo os crimes relatados.2

A audiência aconteceu depois de o inspetor geral do Departamento de Justiça, Michael Horowitz, emitir um relatório contundente criticando o FBI por inviabilizar a investigação após uma série de erros que permitiram que os abusos continuassem por meses.3

Várias atletas e ex-atletas foram ouvidas pelo Comitê do Senado, dentre as quais, as ginastas olímpicas Simone Biles, Aly Raisman, McKayla Maroney e a ex-ginasta Maggie Nichols, que foi a primeira vítima a denunciar o abuso à USA Gymnastics em 2015.

A ex-ginasta Maggie Nichols acusou a USA Gymnastics, o Comitê Olímpico de Ginástica dos EUA e o FBI de permitir que Nassar continuasse abusando de outras pessoas, afirmando que denunciou Nassar à USA Gymnastics há muito tempo e que dezenas de outras meninas e mulheres no Estado de Michigan continuaram sendo abusadas, mesmo depois da sua denúncia. Relatou, ainda, que não foi entrevistada pelo FBI por mais de um ano depois de denunciar o abuso e que passou a ser tratada de forma hostil pelos funcionários públicos federais.4

A ginasta Simone Biles afirmou que se tratava do maior caso de abuso sexual na história do esporte americano, e que as atletas sofreram e continuavam a sofrer porque ninguém no FBI, no USAG ou no USOPC fez o que era necessário para protegê-las. Segundo Biles, referidas entidades eram encarregadas da proteção do esporte e das atletas, tendo falhado em apurar responsabilidades e impedir ou fazer cessar os abusos, desejando que todos os envolvidos no fracasso das investigações conduzidas pelo FBI fossem processados federalmente.5

A ginasta Aly Raisman pediu “responsabilidade genuína” e afirmou que isso significa uma revisão completa do sistema e uma investigação completa do FBI, do Comitê Olímpico e Paralímpico dos EUA e da USA Gymnastics.6

Por ocasião de audiência pública sobre o caso no Senado, o republicano Charles Grassley afirmou que “as crianças sofreram desnecessariamente porque vários agentes em vários escritórios do FBI se recusaram a compartilhar as alegações contra Nassar com seus colegas oficiais em agências estaduais e locais”.7 Segundo o presidente do Comitê Judiciário do Senado, Dick Durbin, as falhas do FBI “pintam um quadro chocante do abandono do dever do FBI e da incompetência grosseira”.

Omissão do FBI

Conforme apurações preliminares da própria agência, funcionários do FBI possuíam conhecimento das denúncias dos abusos sexuais cometidos pelo médico Nassar, tendo, apesar disso, negligenciado gravemente seus deveres funcionais.

Essa grave omissão ou negligência teria, assim, contribuído para que aproximadamente 100 mulheres e crianças fossem abusadas, entre 28 de julho de 2015 e 12 de setembro de 2016. Há, inclusive, acusações de que os agentes federais teriam conspirado com funcionários do mais alto escalão do Comitê Olímpico e Paralímpico dos Estados Unidos e da USA Gymnastics, objetivando ocultar os casos de abuso sexual.

Agentes do FBI foram grosseiramente negligentes em seus deveres ao se recusar a entrevistar ginastas que estavam dispostas a falar sobre os abusos, falhando em compartilhar as queixas para a Lansing Michigan, onde Nassar continuava abusando de meninas, ignorando suas obrigações de denunciar abuso infantil aos agentes estaduais e a outras agências federais, para além de mentir para o Congresso, para a imprensa e para mídia.

Um relatório geral do Departamento de Justiça norte-americano encontrou falhas grosseiras do FBI em investigar adequadamente as reclamações de ginastas desde 2015. Apesar disso, em maio de 2022, o Departamento de Justiça anunciou que não faria acusações criminais contra os ex-agentes do FBI ??que atuaram no caso da investigação contra Nassar.

Federal Tort Claims Act (FTCA)

O escândalo envolvendo a grave negligência do FBI em apurar as denúncias de abuso sexual do médico da equipe de ginástica norte-americana chama a atenção, também, pela aplicação de uma legislação sui generis a respeito da dedução das pretensões indenizatórias por parte das vítimas.

Isso porque, nos EUA, processar um agente ou uma entidade do governo federal por danos revela-se tarefa mais desafiadora do que processar um cidadão comum ou uma empresa privada, em virtude da antiga e clássica doutrina da sovereign immunity – empecilho por vezes intransponível para a obtenção de reparação estatal por danos.

Buscando amenizar ou relativizar referida doutrina, a legislação federal e legislações estaduais8 passaram a estabelecer condições para a admissibilidade da dedução de pretensões indenizatórias contra um agente ou entidade pública, a partir de expressa permissão governamental a respeito.

É o que determina o Federal Tort Claims Act (FTCA), uma legislação federal promulgada em 1946, regulamentando as condições e o procedimento para o processamento administrativo e eventualmente judicial de pedidos de indenização por danos pessoais, morte ou danos patrimoniais causados por atos negligentes, ilícitos ou por omissão de um funcionário do governo federal.9

O Federal Tort Claims Act – conhecido anteriormente como Lei de Reorganização Legislativa -, foi aprovado logo após um acidente, em 1945, envolvendo a força aérea norte-americana: um bombardeiro B-25, pilotado pelo tenente-coronel William F. Smith Jr., colidiu com o lado norte do Empire State Building, na cidade de Nova Iorque.

Tratava-se de um vôo de rotina da aeronave, envolvendo o transporte de pessoas, durante o qual o piloto ficou desorientado por força de denso nevoeiro. Mesmo tendo sido advertido a respeito das péssimas condições de visibilidade, o militar insistiu na tentativa de pouso, acabando por colidir com o icônico prédio de Nova Iorque. O acidente causou a morte de quatorze pessoas (três tripulantes e onze pessoas no prédio), além de danos estimados em US$ 1 milhão.

O fato acabou sendo o estopim para a aprovação do projeto de lei que estava tramitando no Congresso norte-americano há mais de duas décadas. Em que pese a lei ter sido promulgada em 1946, foi permitido que os familiares das vítimas do acidente buscassem uma indenização.

A FTCA é uma lei altamente complexa que permite tipos específicos de ações judiciais contra uma entidade do governo federal e funcionários federais que causaram lesões.10

Segundo o Federal Tort Claims Act, os requerentes são obrigados a inicialmente notificar a agência federal antes que uma ação seja ajuizada perante um Tribunal federal. Essa reclamação deve ser apresentada junto à própria agência federal acusada de negligência ou má-conduta. Para tanto, o governo federal fornece um formulário de solicitação (check-the-box) pelo qual a própria vítima pode preencher ou contratar um advogado com experiência em reclamações contra o governo.11

A reclamação, incluindo a narrativa detalhada dos fatos e dos danos sofridos, deve ser apresentada dentro do prazo de dois anos a partir do evento gerador da pretensão. Além disso, como alguns estados têm um estatuto de limitações mais restrito para danos pessoais e múltiplas entidades, pode ser que o prazo seja menor – até um ano após a ocorrência do evento.

Depois de registrar a reclamação, a agência tem um prazo de seis meses para responder, podendo concordar com a vítima, indenizando-a diretamente pelos danos sofridos, ou rejeitar a reclamação, recusando-se a pagar o valor da indenização pretendida. Diante da ausência de resposta, negativa ou da discordância da agência federal com os valores indenizatórios, a vítima passa a ser autorizada a, em até seis meses, judicializar o caso.

Questão controvertida reside na limitação dos valores indenizatórios: o FTCA não autoriza o pedido de punitive damages na reclamação administrativa. Para além disso, a vítima ainda pode estar suportando os reflexos dos danos sofridos, como no caso de despesas médicas oriundas de eventual tratamento, que não estariam contidos na reclamação administrativa.12

Caso a reclamação administrativa não seja atendida, a ação judicial deverá ser proposta no Tribunal Distrital dos Estados Unidos da residência da vítima ou do local onde ocorreram as ações que deram origem à reclamação.

No caso das ginastas norte-americanas, em consonância com a FTCA, a reclamação administrativa foi oficializada junto à agência federal de investigação (FBI) e segue aguardando a resposta.

Mais de 90 meninas e mulheres que teriam sido abusadas sexualmente apresentaram pedidos indenizatórios de mais de US$ 1 bilhão contra o FBI. As ginastas Simone Biles, Aly Raisman, McKayla Maroney e Maggie Nichols pleitearam, cada uma, US$ 50 milhões. As demais requerentes pleitearam, cada, aproximadamente US$ 10 milhões. No total, a soma das indenizações orçaria entre de US$ 1 bilhão a US$ 1,2 bilhão.

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1 REUTERS. Disponível aqui. Acesso em 23 de outubro de 2022.

2 COMMITTEE ON THE JUDICIARY. Dereliction of Duty: Examining the Inspector General’s Report on the FBI’s Handling of the Larry Nassar Investigation. Disponível aqui. Acesso em 27 de outubro de 2022.

3 COMMITTEE ON THE JUDICIARY. Dereliction of Duty: Examining the Inspector General’s Report on the FBI’s Handling of the Larry Nassar Investigation. Disponível aqui. Acesso em 27 de outubro de 2022.

4 COMMITTEE ON THE JUDICIARY. Dereliction of Duty: Examining the Inspector General’s Report on the FBI’s Handling of the Larry Nassar Investigation. Disponível aqui. Acesso em 27 de outubro de 2022, p.02.

5 COMMITTEE ON THE JUDICIARY. Dereliction of Duty: Examining the Inspector General’s Report on the FBI’s Handling of the Larry Nassar Investigation. Disponível aqui. Acesso em 27 de outubro de 2022.

6 COMMITTEE ON THE JUDICIARY. Dereliction of Duty: Examining the Inspector General’s Report on the FBI’s Handling of the Larry Nassar Investigation. Disponível aqui. Acesso em 27 de outubro de 2022.

7 COMMITTEE ON THE JUDICIARY. Dereliction of Duty: Examining the Inspector General’s Report on the FBI’s Handling of the Larry Nassar Investigation.  Disponível aqui. Acesso em 27 de outubro de 2022.

8 Como exemplo, o Estado da Louisiana aboliu expressamente a sovereign immunity em seu texto constitucional: “Neither the state, a state agency, nor a political subdivision shall be immune from suit and liability in contract or for injury to person or property” (La. Const. art. XII, § 10(A).

9 Disponível aqui. Acesso em 28 de outubro de 2022.

10 Disponível aqui. Acesso em 25 de outubro de 2022.

11 Justia. Disponível aqui. Acesso em 25 de outubro de 2022.

12 Disponível aqui. Acesso em 25 de outubro de 2022.

Artigo originalmente publicado em: https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-privado-no-common-law/376552/o-caso-das-ginastas-dos-eua-x-fbi