A atuação judicial dos testers na proteção das pessoas com deficiência nos EUA: legitimidade ativa e danos estigmáticos em julgamento
Thaís G. Pascoaloto Venturi
terça-feira, 21 de novembro de 2023
Em 2020, Deborah Laufer, moradora da Flórida, diagnosticada com esclerosa múltipla, cadeirante e com deficiência visual, visitou o site do Acheson Hotels, que na época administrava o hotel The Coast Village Inn em Wells (Maine), e constatou que a home page consultada não detalhava informações a respeito das condições de acessibilidade das instalações, exigidas pela Lei dos Americanos com Deficiência (ADA – Americans with Disabilities Act).
Mesmo não pretendendo se hospedar no referido hotel, Laufer ajuizou uma ação contra o estabelecimento. Sua legitimidade ativa para a referida demanda se justificaria a partir de sua atuação como “tester”, vale dizer, uma pessoa que averigua se os sistemas de reservas online dos hotéis cumprem com os parâmetros legais relacionados à “Regra da Reserva”.1
A função de “tester de discriminação” há muito é reconhecida nos EUA como relevante para a fiscalização da aplicação das leis de direitos civis em benefício das pessoas com deficiência. Desde de 1990, a Lei dos Americanos com Deficiência (ADA) exige que as instituições públicas e privadas – como restaurantes, lojas de varejo, escolas e hotéis – sejam acessíveis às pessoas com deficiência. Quando da oferta de serviços de alojamento, com base na ADA, extrai-se que os proprietários e operadores de hotéis devem oferecer informações suficientes através dos seus serviços de reservas para permitir que potenciais clientes com deficiência decidam se o negócio satisfaz as suas necessidades.2
De acordo com o professor Michael Ashley Stein, da Harvard Law School, “a ADA existe há 33 anos e a exigência é que você publique as informações relativas ao acesso no site para que as pessoas possam saber. A ADA, e os direitos civis em geral, determinam que as pessoas com deficiência, tal como qualquer outra pessoa, devem poder ir a hotéis, restaurantes, clubes ou o que quer que seja, tal como todas as outras pessoas.”3
O problema central da discussão sobre a atuação dos testers gira em torno da viabilidade de se qualificar a inexistência de condições de acessibilidade (ou a falta de informações adequadas a respeito) como um dano em si (um “dano estigmático”4), derivado de uma presunção de que tanto o tester como outros indivíduos com deficiência não seriam bem-vindos nesses lugares.
Nesse sentido, os tribunais norte-americanos estão divididos quanto à interpretação do Título III da ADA, precisamente na definição sobre ser ou não ser um dano indenizável a formal violação da norma que determina não apenas condições especiais de acessibilidade como informações adequadas a respeito. Se um hotel não possui condições de acessibilidade, ou não publica informações adequadas a respeito em sua publicidade, é possível afirmar a ocorrência de uma lesão estigmática?
De acordo com Stein, “o Segundo Circuito considera que o mero tratamento desigual ou violação da norma não demonstra necessariamente discriminação, enquanto o Sétimo Circuito é, na verdade, mais progressista nesse aspecto. Mas os circuitos concordam unanimemente que uma violação legal no caso de exclusão de indivíduos com base na raça é uma lesão estigmática reconhecível. Então, uma questão que surge é: por que não está tudo bem no caso da raça, mas de acordo com alguns circuitos, está tudo bem, ou pelo menos não é reconhecível como uma lesão estigmática, no contexto da deficiência?”5
Para além da fundamental discussão substancial envolvida, há ainda outra de ordem processual: muitas das demandas judiciais fundamentadas na lesão estigmática das pessoas com deficiência vem sendo instauradas como parte de uma notória agenda de judicialização em série – especialmente na Califórnia e na Flórida -, visando a obtenção de lucros. Especificamente no caso de Laufer, foram identificados mais de 600 hotéis por ela processados nos últimos cinco anos.
No caso Acheson Hotels, LLC v. Laufer, o tribunal distrital recusou-se a processar a ação com base na ilegitimidade da autora, na medida em que ela sequer revelou qualquer interesse concreto de se hospedar no hotel demandado, e, portanto, não seria apta a deduzir qualquer pretensão alegando danos decorrentes da falta de informações adequadas no site da empresa.
Subsequentemente, o Tribunal de Apelações do 1º Circuito dos EUA decidiu por reativar o processo, sob o fundamento de que a legitimidade ativa de Laufer decorreria de seu direito à adequada informação sobre as condições de acessibilidade omitidas pelo site do hotel.
A partir daí, iniciaram-se as tentativas de submissão do caso à Suprema Corte dos EUA.
Representando a Acheson, o advogado Adam Unikowsky instou os Justices a admitirem a revisão do caso, concentrando-se na questão processual envolvida a respeito da (i)legitimidade de Laufer. A pretensão da rede hoteleira é obter decisão da Suprema Corte que iniba iniciativas dos testers, desestimulando ações semelhantes.
Por sua vez, Laufer também requereu a admissão do caso pela Suprema Corte, a fim de se resolver o conflito entre os tribunais de recurso sobre a questão pendente.6 Contudo, posteriormente Laufer desistiu da ação em razão de um grupo de juízes federais ter recomendado que o advogado que a tinha representado noutros casos envolvendo o cumprimento da ADA fosse suspenso de exercer a advocacia em Maryland, devido a repetidas violações éticas.
As discussões sobre a admissão do caso pela Suprema Corte, a fim de se determinar a questão da legitimidade dos testers para demandar alegando discriminação
Em outubro de 2023, a Suprema Corte dos Estados Unidos recebeu os argumentos orais do caso para decidir a respeito da atuação dos testers. Em específico, a análise envolvida reporta-se à possibilidade de um tester, arrogando-se na condição de defensor de pessoas com deficiência, deter legitimidade ativa para processar um estabelecimento por suposta violação da Lei dos Americanos com Deficiência – mesmo que ela não tenha se hospedado no estabelecimento.7
De um lado, a Acheson insistiu na tese de que, para a legitimidade ativa ser reconhecida, o requerente deve necessariamente ter sofrido lesão estigmática resultante diretamente do fato de ter lhe sido negado tratamento igual. Embora a Acheson reconheça que o não atendimento das necessidades das pessoas com deficiência no acesso aos seus hotéis possa efetivamente constituir discriminação, afirma que, no caso concreto, a Coast Village não discriminou Laufer ao negar-lhe o acesso às suas instalações, na medida em que ela nunca teve a real intenção de se hospedar no hotel.
Por outro lado, Laufer sustentou que a Suprema Corte deve reconhecer a lesão por ela sofrida, em virtude do tratamento discriminatório ocorrido no caso concreto, como uma lesão ao Artigo III da ADA. Assim, a autora tester teria legitimidade para a causa, mesmo tendo se exposto voluntariamente ao tratamento discriminatório justamente para demandar judicialmente a discriminação ilegal da empresa ré.
Laufer sustentou que o Congresso dos EUA promulgou a ADA para integrar as pessoas com deficiência em todos os aspectos da sociedade, e que a Coast Village não reconheceu a dignidade dessas pessoas, inibindo-as de usufruir dos seus serviços de reservas online – conduta essa que estigmatizaria os membros de grupos desfavorecidos, tratando-os como cidadãos de segunda classe.
Na apreciação desses argumentos, a Suprema Corte fez menção a um emblemático precedente gerado no julgamento do caso Havens Realty v. Coleman (1982). Na ocasião, o Tribunal decidiu a favor de uma organização de direitos civis (a Housing Opportunities Made Equal – HOME), que enviou duas mulheres (uma negra e uma branca) como testers, para tentar alugar um apartamento em um condomínio da Havens Realty Corp., organização proprietária de um complexo de apartamentos em um subúrbio de Richmond, Virgínia.
A HOME se qualificou como uma corporação sem fins lucrativos, que tinha como objetivo “tornar a igualdade de oportunidades na habitação uma realidade na Área Metropolitana de Richmond”. Para tanto, por via das testers enviadas, buscou determinar se a Havens efetivamente praticava discriminação racial.
Como resultado do teste, a tester negra (Coles) foi informada falsamente pela Havens de que não havia mais apartamentos disponíveis. Por outro lado, à tester branca foram ofertadas diversas unidades para locação.
Diante disso, a tester negra (Coles) e a organização de direitos civis (a HOME) processaram a Havens, tendo a Suprema Corte, à época, decidido pela legitimidade de Coles para mover uma ação por discriminação habitacional porque, apesar da ausência de real intenção de locação de um apartamento, ela sofrera um “dano particularizado”, na medida em que a locação lhe foi recusada por causa de sua raça.8
Apesar do precedente citado, o Justice John G. Roberts Jr. o distinguiu do caso de Laufer. Segundo o magistrado, em Havens Realty Co. v. Coleman houve “discriminação real” contra a tester, o que não teria ocorrido no caso de Laufer. Segundo Roberts, a discriminação decorrente da falha em fornecer informações sobre acessibilidade no site da empresa ré não implica a legitimidade de Laufer “porque ela realmente não precisa das informações sobre o site, ela não vai usá-las”.9
Por sua vez, o Justice Samuel Alito reconheceu que, devido à contradição dos julgamentos já ocorridos sobre o tema nos tribunais de apelação, seria útil e conveniente que a Suprema Corte fornecesse orientação sobre esta questão. Ainda que, a respeito do caso concreto, observou Alito, “está morto como um prego”, não só porque Laufer expressamente requerera a desistência da ação no tribunal distrital, mas também porque a Acheson já revisara o seu website,10 o que conduziria à necessidade de extinção da demanda por prejudicialidade, invocando-se a doutrina “mootness”.11
Já o Justice Clarence Thomas, a respeito da legitimação ativa, sugeriu que “seria mais fácil simplesmente discutir isso e esperar por um processo que ainda está pendente para outra rodada” para decidir a questão.12
O Justice Neil Gorsuch indagou sobre o que Laufer teria que fazer para ostentar legitimidade para processar a empresa ré por uma violação da regra de reserva. O advogado da ré (Unikowsky) sustentou que ela teria que ter “planos de viagem concretos”, para que a falha em fornecer informações de acessibilidade tivesse “consequências posteriores”.13
Contra esse argumento, a Justice Sotomayor ressaltou que “não é assim que as pessoas viajam”. Segundo Sotomayor, as pessoas muitas vezes olham para uma variedade de hotéis como parte do processo de decidir para onde querem viajar. Se a informação sobre acessibilidade não estiver disponível online, continuou ela, as pessoas com deficiência não poderão decidir concretamente pela hospedagem. 14
A Justice Amy Coney Barrett também simpatizou com o argumento de Unikowsky, no sentido de que o Tribunal deveria aceitar se manifestar sobre o caso, no intuito de resolver a contradição dos julgamentos dos demais tribunais
inferiores, e também porque “recursos significativos já foram investidos neste caso”.15
O Justice Brett Kavanaugh, por fim, sugeriu que o Tribunal decida pela admissão da discussão a respeito da legitimidade ativa dos testers, mas que o faça em uma outra oportunidade, em outro caso que chegue à Suprema Corte.
Aguarda-se a decisão da Suprema Corte.
Como se percebe, o tema principal a ser enfrentado – do qual depende a própria definição da legitimidade ativa dos testers para ações indenizatórias por discriminação -, está relacionado à compreensão do que efetivamente corresponda a um dano estigmático.
Trata-se de tema ainda não enfrentado pela doutrina brasileira, sobre o qual em breve nos dedicaremos nesse espaço.
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Referências
1 JUSTIA US LAW. Acheson Hotels, LLC v. Laufer. Disponível em: https://law.justia.com/cases/federal/appellate-courts/ca1/21-1410/21-1410-2022-10-05.html. Acesso em 11 de novembro de 2023.
2 Americans with Disabilities Act. Disponível em: https://www.ada.gov/. Acesso em 12 de novembro de 2023.
3 Harvard Law Today. A test for the Americans with Disabilities Act. Disponível em: https://hls.harvard.edu/today/supreme-court-preview-acheson-hotels-llc-v-laufer/. Acesso em 11 de novembro de 2023.
4 “A stigmatic injury is an injury that one suffers because one is a member of some group. The injury itself is by definition neither personal nor individual because every member of the group would suffer the same injury under the same circumstances.” Cornell Law School. Legal Information Institute. Acheson Hotels, LLC v. Laufer. Disponível em: https://www.law.cornell.edu/supct/cert/22-429. Acesso em 12 de novembro de 2023.
5 Harvard Law Today. A test for the Americans with Disabilities Act. Disponível em: https://hls.harvard.edu/today/supreme-court-preview-acheson-hotels-llc-v-laufer/. Acesso em 11 de novembro de 2023.
6 SCOTUS BLOG. Acheson Hotels, LLC v. Laufer. Disponível em: https://www.scotusblog.com/case-files/cases/acheson-hotels-llc-v-laufer/. Acesso em 12 de novembro de 2023.
7 OYEZ. Acheson Hotels, LLC v. Laufer. A questão submetida ao juízo de admissibilidade dos Justices é: “Does an ADA “tester” have Article III standing to challenge a hotel’s failure to provide disability accessibility information on its website, even if she has no plans to visit the hotel?” Disponível em: https://www.oyez.org/cases/2023/22-429. Acesso em 11 de novembro de 2023.
8 JUSTIA U.S. SUPREME COURT. Havens Realty Corp. v. Coleman, 455 U.S. 363 (1982). Disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/455/363/. Acesso em 11 de novembro de 2023.
9 OYEZ. Acheson Hotels, LLC v. Laufer. Disponível em: https://www.oyez.org/cases/2023/22-429. Acesso em 11 de novembro de 2023.
10 Idem.
11 Cornell Law School. Legal Information Institute. Acheson Hotels, LLC v. Laufer. Disponível em: https://www.law.cornell.edu/supct/cert/22-429. Acesso em 12 de novembro de 2023.
12 OYEZ. Acheson Hotels, LLC v. Laufer. Disponível em: https://www.oyez.org/cases/2023/22-429. Acesso em 11 de novembro de 2023.
13 Idem.
14 Idem.
15 Idem.
Artigo originalmente publicado em: https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-privado-no-common-law/397229/atuacao-dos-testers-na-protecao-de-pessoas-com-deficiencia-nos-eua