Thais Goveia Pascoaloto Venturi
Guido Calabresi foi um dos maiores responsáveis pelo prestígio que a análise econômica do direito adquiriu a partir da década de 1960. Ao analisar a responsabilidade civil sob a ótica dos “custos dos acidentes”, o jurista ítalo-americano sustentou a aplicação de uma racionalidade econômica preventiva, voltada à averiguação de quem poderia evitar os danos a um menor custo.
A célebre obra The Costs of Accidents: A Legal and Economic Analysis continua sendo um referencial teórico para a compreensão da responsabilidade civil no direito civil contemporâneo.
Nascido na Itália e naturalizado norte-americano, Calabresi começou a lecionar em 1959, logo após obter diversas graduações. Bacharelou-se summa cum laude no Yale College (1953), graduou-se com distinção de primeira classe pelo Magdalen College, Oxford University (1955), obteve um LL.B. grau, magna cum laude, pela Yale Law School (1958) e um MA em política, filosofia e economia pela Oxford University (1959). Guido Calabresi foi indicado ao cargo de juiz da Corte de apelação dos Estados Unidos da América (Segundo Circuito – 1994), tendo recebido mais de cinquenta títulos honorários de universidades norte-americanas e do exterior, possuindo extensa e densa produção científica (é autor de sete livros e mais de cem artigos científicos).1
Dentre os principais contributos legados por Calabresi, destaca-se a forte crítica direcionada ao sistema de responsabilidade fundado na culpa, sustentando a necessidade da adoção de regras mais simples e diretas, concebidas a partir da ideia de menor custo de prevenção (princípio do cheapest cost avoider). Para o jurista ítalo-americano, a imputação de responsabilidade civil deve recair sobre o sujeito que poderia ter evitado o acidente a custos menores, mas não o fez.
Considerando que as normas de responsabilidade civil atuam como sistema de incentivos à adoção de condutas preventivas pelas partes envolvidas em situação de risco, a doutrina empenhada por Calabresi aponta a existência de ao menos cinco fundamentos para validar o emprego de meios de prevenção em um sistema de responsabilidade civil, concernentes: i) à ignorância dos particulares a respeito do que mais lhes convém; ii) aos custos de acidentes não reduzíveis a dinheiro; iii) aos juízos morais envolvidos; iv) às limitações intrínsecas à teoria da repartição dos recursos e v) à necessidade de a prevenção influenciar, eficazmente, sobre certas atividades e atos.2
Pela perspectiva da análise econômica do direito, a grande vantagem social da responsabilidade civil é a de prevenir danos e preservar vidas humanas, na medida em que “A teoria econômica pode sugerir um método de adotar decisões: o mercado, por exemplo. Não obstante, as alternativas nas quais se enfrentam vidas humanas e razões monetárias ou de conveniência nunca podem reduzir-se a termos pecuniários, e por isso nunca usamos o mercado como método único.”3
Em célebre artigo escrito juntamente com Douglas Melamed, publicado na Harvard Law Review, Calabresi sustenta que o direito seria protegido por três tipos de regras: de propriedade4, de responsabilidade5 e de inalienabilidade6. O problema essencial inerente ao cumprimento de tais regras seria concernente à sua titularidade e legitimidade, pois cada vez que o Estado-juiz enfrenta um conflito de interesses, deve decidir qual das partes favorecer7.
Assim, a discussão em torno da proteção dos direitos por meio de regras de propriedade ou de responsabilidade envolve, fundamentalmente, a análise da legitimidade e da titularidade dos direitos subjetivos. Um dos maiores problemas referentes aos altos custos de transação advém precisamente da ausência de legitimidade ou titularidade dos direitos (o que é de todos não é de ninguém), na medida em que se não houver uma titularidade suficientemente forte para as pessoas reivindicarem as perdas e os ganhos como seus, perdem-se os incentivos para resolverem os problemas diretamente.
Como explicam Calabresi e Melamed, com exceção das regras de inalienabilidade (o mercado não pode ser admitido como critério de proteção dos direitos inalienáveis, uma vez que não podem ser compreendidos em termos de eficiência e de distribuição), o direito é protegido por regras de propriedade e de responsabilidade.
Conforme as regras de propriedade, uma vez definida a titularidade original, o direito confia a proteção dos interesses sociais relevantes às próprias partes envolvidas, por via da autoproteção – o que suscita uma mínima intervenção estatal. Somente quando as pessoas não conseguem tutelar os seus próprios interesses, em razão dos altos custos de transação, incidem então as regras de responsabilidade.8
É justamente na fixação das regras de responsabilidade que os autores sustentam a necessidade de uma maior intervenção estatal, na medida em que, ao violar um direito, o agressor deve pagar um valor objetivamente determinado. Nesse sentido, a reparação funcionaria como a reconstituição de um acordo hipotético, por motivos de eficiência econômica e promovendo fins distributivos.
No entanto, sempre que seja possível determinar a titularidade dos direitos, a prevenção pode ser negociada pelos próprios particulares, com baixos custos de transação, buscando evitar a ocorrência do dano.9
É dessa forma que, por via de um sistema de incentivos para a prática ou omissão de comportamentos, a responsabilidade civil, ao lado da regulação estatal, induz a adoção de cautelas quando do exercício de atividades que gerem riscos.
Se o paradigma tradicional da responsabilidade civil diz respeito à compensação de danos, a análise econômica adota o paradigma da eficiência social, vale dizer, verifica a prestabilidade do respectivo sistema para induzir adequados incentivos, tanto para o agressor como para a vítima, no objetivo de evitar danos, ou, acaso ocorridos, internalizá-los da maneira mais eficiente do ponto de vista econômico e social.10
A funcionalização do direito da responsabilidade civil, possivelmente operacionalizada pela internalização da prevenção, não leva em consideração tão somente padrões econômicos ligados à eficiência. A imprescindibilidade da preservação de certos direitos considerados fundamentais, “custe o que custar”, por exemplo, afastaria de imediato qualquer ponderação a respeito de custos-benefícios existentes entre a economia da prevenção versus a economia da compensação.
Nesse sentido, comumente se afirma a imprestabilidade da análise econômica do direito no campo dos direitos fundamentais, de natureza extrapatrimonial, tal como os relativos à personalidade, ao meio ambiente e à saúde. A missão do Estado social em protegê-los não se compatibilizaria com uma visão estritamente econômica.
Todavia, mesmo nesses temas, as críticas voltadas contra a viabilidade da aplicação da análise econômica merecem ser melhor ponderadas, na exata medida da necessidade de verificação das possibilidades e dos limites de integração entre as próprias ciências sociais.
Se a análise econômica do direito parece não definir adequadamente formas para a compensação de danos corporais ou aos direitos de personalidade (até porque se trata de danos irreparáveis sob o ponto de vista filosófico), ela auxilia precisamente no campo da prevenção dos danos.
Como observa Polinsky, ainda que a análise econômica do direito não seja hábil para lidar com situações envolvendo danos à vida ou danos corporais (até porque nesse campo qualquer procedimento utilizado para valorá-los revela-se naturalmente arbitrário), não há motivo para que a referida doutrina não seja empregada para a evolução das regras pertinentes aos riscos dos acidentes pessoais, a partir de indagações a respeito do quanto as pessoas estariam dispostas a gastar para evitar os riscos de acidentes ou de quanto as pessoas estariam dispostas a receber pelo agravamento dos riscos do sofrimento de danos corporais.11
Nunca se pode olvidar, contudo, que a eficiência econômica, em que pese constituir objetivo racional e pragmático irrecusável a qualquer sistema de justiça, deve ser considerada como apenas mais um dentre os diversos objetivos buscados pela regulação implementada pelo direito, como ressalta Alpa, criticando Posner: “Elevada a uma verdadeira e própria teoria, a análise econômica do direito que Posner elabora, parte de premissas ou, mais corretamente, de postulados que não parecem ser aceitáveis. A realização da “eficiência econômica” pode, se muito, constituir um dos escopos perseguidos na elaboração de programas de normatização dos interesses privados, mas certamente não o único objetivo que o jurista se deve por, nem, tampouco, pode ser a única diretriz (emergente das relações de mercado) que se deva seguir na revisão ou na refundamentação da regra jurídica”.12
A lógica da predileção da prevenção inspira e justifica o estudo da responsabilidade civil por parte do movimento da análise econômica do direito. Como observa Geneviève Viney, “a ideia de prevenção sempre esteve presente no direito da responsabilidade civil. Todavia, um novo impulso lhe foi dado após o fim dos anos 90 por força do grande sucesso da doutrina da análise econômica do direito e por aquela do princípio da precaução. Com efeito, os teóricos da análise econômica do direito atribuem à prevenção um lugar eminente dentre as finalidades da responsabilidade civil. «A impulsão primeira do sistema de responsabilidade civil», escreveu um autor se reportando à essa tendência, «reside em sua constante busca de uma minimização de danos causados a outrem, quer dizer, de uma prevenção de fatos lesivos. É assim em função da aptidão do direito positivo ao favorecimento da prevenção que se julga, segundo essa doutrina, a qualidade desse direito. Todas as reformas ou modificações propostas são apreciadas sob o ângulo de suas aptidões para realizar «o caráter ótimo da prevenção”.13
Como se percebe, a leitura econômica muito tem a auxiliar na compreensão e no aprimoramento dos institutos jurídicos, prestando-se, sobretudo, a demonstrar de que formas a responsabilidade civil pode e deve ser analisada sob uma perspectiva notoriamente preventiva.14
Todavia, isso não quer dizer que o objetivo de prevenção, dentro da perspectiva do direito da responsabilidade civil, se esgote ou se resuma à viabilização da melhor ou maior eficiência econômica, correlacionando-se tão somente com os custos/benefícios inferidos a partir de uma análise objetiva e calculista a respeito dos deveres de cuidado e dos eventuais danos experimentados no seio social.
Conforme sustenta Rosenvald, “A política da regulação consiste no uso de normas e instituições de modo instrumental, a fim de influenciar o nosso comportamento como potenciais agressores, minimizando a incidência de danos causados por tais condutas. Tal política gozou de muito prestígio nos Estados Unidos nas décadas de 60 e 70 basicamente com a introdução da “minimização dos custos sociais de acidentes”, ideia explorada por Guido Calabresi, como forma de trasladação da distribuição do custo do acidente. Ao invés de necessariamente recair sobre o aquele que culposamente causou dano, a lei deveria trasladar o custo para a parte que pudesse evitá-lo ao menor preço. Trata-se de um argumento político, cujo objetivo consiste em produzir uma desejável distribuição de custos e benefícios da vida social associados aos acidentes de tráfico. Contudo, a aplicação prática de tal teoria resultaria na abolição da responsabilidade civil, partindo-se da premissa de que o “cheapest cost avoider” possa ser a própria vítima.”15
De toda sorte, a refundamentação preventiva da responsabilidade civil assenta-se em valores éticos e morais que extrapolam, necessariamente, qualquer racionalidade utilitarista a respeito das possíveis justificativas para se evitar a violação dos direitos e a consequente provocação dos danos.
1 “Guido Calabresi – Yale Law School”. Disponível em: https://law.yale.edu/guido-Calabresi. Acesso em 26 de novembro de 2021. “”
2 Calabresi, Guido. El coste de los accidentes: Análisis económic y jurídico de la responsabilidad civil. Barcelona: Editorial Ariel, 1984, pp. 107-118.
3 Ibid., p. 36.
4 Calabresi, Guido and Melamed, Douglas A. Property Rules, Liability Rules and Inalienability: one view of the cathedral. Harvard Law Review. V. 85, n.º 6, 1972, p. 1092.
5 Idem.
6″An entitlement is inalienable to the extent that its transfer is not permitted between a willing buyer and a willing seller. Tha state intervenes not only to determine who is initially entitled and to determine the compensation that must be paid if the entitlement is taken or destroyed, but also to forbid its sale under some or all circurnstances. Inalienability rules are thus quite different from property and liability rules. Unlike those rules, rules of inalienability not only ‘protect’ the entitlement; they may also be viewed as limiting or regulating the grant of the entitlement itself.” Calabresi, Guido and Melamed, Douglas A. Property Rules, Liability Rules and Inalienability: one view of the cathedral. Harvard Law Review. v. 85, n.º 6, 1972, p. 1092-1093.
7 Ibid., p. 1090.
8 Ibid., p. 1110.
9 Ibid., p. 1109-1110.
10 MATHIS, Klaus. Efficiency instead of justice? Searching for the Philosophical Foundations of the Economic Analysis of Law. Law and Philosophy Library, vol. 84. New York: Springer, 2009, p. 78.
11 Polinsky, A. Mitchell. An introduction to law and economics, 3ª Ed. New York, Aspen, 2003, p. 165-166.
12 Alpa, Guido. Colpa e responsabilità nell’analisi economica del diritto. Analisi economica del direito privato. Milano: Giuffrè Editore, 1998, p. 241.
13 Viney, Geneviéve. Traité de Droit Civil: Introduction à la responsabilité. 3ª ed. Paris: L.G.D.J., 2007, p. 155.
14 No mesmo sentido, indaga oportunamente BATTESINI: “sob a égide do Novo Código Civil, a responsabilidade civil desempenha função social? E, em desempenhando, se a função social da responsabilidade civil está conectada à prevenção e à minimização dos custos dos acidentes? Ao que tudo indica, as respostas são positivas, conforme será evidenciado na subsequente análise econômica de algumas das inovações normativas do Código Civil de 2002, que se caracterizam por criar incentivos à prevenção de acidentes, tais como: o princípio da gravidade da culpa concorrente da vítima, cristalizado no art. 945; a cláusula geral de responsabilidade objetiva pelo risco da atividade, prevista no parágrafo único do art. 927; e a cláusula geral da responsabilidade objetiva pelos danos causados pelos produtos postos em circulação, prevista no art. 931”, BATTESINI, Eugênio. direito e economia: novos horizontes no estudo da responsabilidade civil no Brasil. São Paulo: LTr, 2011, p. 108-109.
15 Rosenvald, Nelson. As políticas da responsabilidade civil no common law. Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-privado-no-common-law/337782/as-politicas-da-responsabilidade-civil-no-common-law. Acesso em 19 de novembro de 2021.
Artigo publicado originalmente em: https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-privado-no-common-law/356034/breves-notas-sobre-a-analise-economica-da-responsabilidade-civil