Fox News v. Dominion: A mediação no maior acordo indenizatório por difamação da história dos EUA
Thaís G. Pascoaloto Venturi
segunda-feira, 21 de agosto de 2023
Há quase três anos, quando iniciamos nossa colaboração com a presente coluna, tivemos a oportunidade de destacar o desenvolvimento do sistema de justiça multiportas. Analisamos o tema sob a perspectiva do direito norte-americano, que há muito já internalizou os meios alternativos de resolução de conflitos (alternative dispute resolution – ADR), assim compreendidos os métodos extrajudiciais pelos quais se alvitra a autocomposição ou a heterocomposição privada da disputa.1
Como já é sabido, a mediação, a negociação e a arbitragem, dentre outros mecanismos “alternativos” à adjudicação estatal, vêm sendo aplicadas nos Estados Unidos com enorme destaque há décadas, propiciando um extraordinário volume de acordos (settlements) conquistados extrajudicialmente, ou, por vezes, via programas alternativos anexos às Cortes.
Já abordamos o tema das ADR’s sob a perspectiva brasileira, demonstrando as dificuldades e o preconceito ainda existentes quanto à sua implementação, na medida em que historicamente o sistema de justiça dos países de civil law foi idealizado e construído objetivando quase que exclusivamente a adjudicação estatal. A ausência de incentivos para a realização de acordos e a promessa de uma longa duração dos processos judiciais acabam funcionando como um verdadeiro convite aos habituais geradores de conflitos sociais a apostar na morosidade e na inefetividade da tutela jurisdicional.
Nessa fase ainda embrionária da implementação do sistema multiportas no Brasil, naturalmente subsiste grande desconfiança a respeito da eficiência dos mecanismos de autocomposição de conflitos – o que se reflete nos baixos índices de acordos homologados judicialmente no país.2
Contra o ceticismo quanto à prestabilidade da mediação e negociação, nada melhor do que se explorar casos concretos. Por esse motivo, voltamos ao tema, apresentando os bastidores de recente acordo construído por via de mediação, que já virou referência nas ADR’s do sistema norte-americano por se tratar de um dos maiores acordos financeiros já convencionados num caso de pretensão indenizatória por difamação.
Trata-se de acordo extrajudicial pelo qual a poderosa empresa norte-americana de mídia Fox News concordou em pagar U$787 milhões à empresa Dominion Voting Systems, a fim de encerrar a demanda judicial já instaurada.
O caso Dominion Voting Systems v Fox News
A demanda judicial movida pela Dominion Voting Systems contra a rede de televisão e entretenimento Fox News tinha por base acusações por difamação propagada pela Fox, pela disseminação de falsas alegações no sentido de que “as urnas eletrônicas [de votação] da Dominion foram usadas para roubar a Casa Branca durante as eleições presidenciais dos Estados Unidos de 2020”.3
Na ação civil por difamação proposta, os principais argumentos apresentados pela Dominion foram os seguintes: “(i) a Fox forneceu intencionalmente uma plataforma para convidados e que os anfitriões da Fox sabiam que fariam declarações falsas e difamatórias no ar; (ii) a Fox, por meio dos anfitriões, afirmou, endossou, repetiu e concordou com as declarações desses convidados; e (iii) a Fox republicou essas declarações difamatórias e falsas no ar, em seus sites, nas suas contas de mídia social e em outras plataformas digitais e serviços de assinatura.”4
Como se percebe, a Dominion buscava responsabilizar civilmente a Fox tendo como fundamento condutas dolosas de disseminação de falsas afirmações (fake news) no sentido de que as urnas eletrônicas fornecidas pela Dominion para a Justiça Elelitoral dos EUA haviam sido usadas “para roubar a Casa Branca do ex-presidente Donald Trump” nas últimas eleições para presidência. Segundo a Dominion, a maciça difusão dessa afirmação sabidamente falsa por diversas mídias da Fox News teria contribuído diretamente para desencadear a violência que culminou na invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021.5
De acordo com o periódico Washington Post, à medida em que os procedimentos de pré-julgamento da demanda indenizatória avançavam, os executivos da Fox News já estavam resignados a enfrentar um julgamento perante o Tribunal do Júri, com uma expectativa de provável condenação ao pagamento de impressionantes U$1,6 bilhão em favor da Dominion. Segundo a imprensa norte-americana, tratava-se de julgamento em processo cível por difamação dos mais aguardados da história.6
Foi exatamente nessa altura que a mediação surgiu como ferramenta de solução consensual do conflito.
Nada de anormal até aí, não fosse a forma como a ADR foi operacionalizada no caso concreto.
A mediação no caso Dominion Voting Systems v Fox News
Iniciada a fase preliminar do processo judicial – especificamente, ao final de uma das primeiras audiências (ocorrida em uma sexta-feira) -, o juiz Eric M. Davis, do Tribunal Superior de Delaware, sugeriu aos advogados de ambas as empresas que tentassem resolver suas diferenças.7 O julgamento estava marcado para começar na segunda-feira.
A Dominion e a Fox News concordaram com a sugestão de mediação. Seus advogados passaram então a tentar exaustivamente chegar a um acordo, realizando diversas reuniões ao longo de todo o final de semana, mas sem surtir efeito.
Quase sem mais tempo hábil para um acordo, as empresas em litígio enviaram então um e-mail de urgência, no domingo pela manhã, endereçado ao experiente mediador Jerry Roscoe8, que passava suas férias na Bósnia, embarcado em um navio de cruzeiro pelo rio Danúbio.9
Em apenas dois dias, e exclusivamente por via de contatos telefônicos, Jerry Roscoe conseguiu mediar o conflito, convencendo as partes a assinar um acordo indenizatório no valor de U$787,5 milhões – a metade do que fora demandado na ação judicial pela Dominion.
Em entrevista dada posteriormente ao encerramento do caso, Roscoe disse, lembrando do e-mail dramático que recebeu durante as férias: “Se estaria disposto a mediar um caso importante?” O mediador não pensou duas vezes e logo passou a ler milhares de páginas de documentos, rolando-as em seu smart fone durante a noite, preparando-se para entrar no último minuto para tentar encerrar a disputa.10
Segundo revelou Roscoe, as expectativas de acordo eram baixas no início. As partes não estavam muito otimistas de que a mediação iria resolver o conflito. Os principais advogados das empresas (Justin Nelson representando a Dominion e Dan Webb representando a Fox), tiveram papéis mínimos na mediação, pois estavam muito ocupados com os preparativos para o esperado confronto marcado para ocorrer no tribunal dentro de poucas horas.
Tendo o juiz concordado com a moção das partes para o adiamento do julgamento pelo júri para o dia seguinte (terça-feira), as negociações continuaram.
Conforme estimou Roscoe, entre a segunda-feira e a terça-feira, realizou cerca de 50 ligações para ambas as partes. Apesar disso, na noite de segunda-feira, sem progresso nas negociações, os advogados das partes foram para casa esperando pelo julgamento no dia seguinte. Na manhã de terça-feira, eles se vestiram e se dirigiram ao tribunal.11
Segundo Roscoe, desde os primeiros contatos com o conflito, rapidamente verificou que a pretensão monetária da Dominion não era o único problema que separava as partes e impedia qualquer acordo. Mas depois de muitas ligações, ocorreu uma aproximação: “ambos os lados tinham bons advogados e queriam ver se conseguiam resolver o caso.”12
A Fox argumentara no tribunal que o valor real da receita da Dominion em 2022 foi o segundo maior de sua história, tendo superado suas projeções para aquele ano, mesmo após as declarações supostamente difamatórias da Fox. Isso, na visão da Fox, ia contra a alegação da Dominion de que seus negócios foram severamente prejudicados pela difamação em questão.13
Todavia, um dos principais entraves ao acordo era o precedente a ser criado. Na verdade, os executivos da Fox estavam preocupados com o fato de que um acordo com a Dominion poderia fazer com que a Smartmatic USA – outra empresa de tecnologia que forneceu equipamentos para votação nas eleições americanas que também está processando a Fox por difamação -, exigisse valores indenizatórios similares em uma futura negociação.
Às 9:00h de terça-feira, o julgamento pelo júri popular parecia iminente para as partes envolvidas. Nos procedimentos preliminares do julgamento, foram escolhidos 12 jurados residentes em Delaware, para além de outros 12 jurados selecionados como suplentes. O juiz Davis os empossou e lhes deu as instruções padronizadas da Corte. O julgamento seria retomado às 13h30, para as declarações iniciais (open statements).14
Contudo, no retorno ao tribunal, às 13h30, o juiz foi recebido pelos advogados da Dominion e da Fox, sendo informado a respeito de um acordo entre as partes. Por horas, o atraso do julgamento foi inexplicável para o público e para os jurados. Pouco antes das 16h, o juiz Davis voltou ao tribunal anunciando que as partes haviam resolvido o caso.
Pela confidencialidade atribuída ao acordo negociado entre a Dominion e a Fox News, seus termos não foram divulgados, a não ser o valor pago (U$787,5 milhões).
Em comunicado oficial, a Fox expressou: “Estamos satisfeitos por ter chegado a um acordo sobre nossa disputa com a Dominion Voting Systems. Reconhecemos as decisões do Tribunal que declararam falsas certas alegações sobre a Dominion. Este acordo reflete o compromisso contínuo da Fox com os mais altos padrões jornalísticos. Esperamos que nossa decisão de resolver essa disputa com a Dominion amigavelmente, em vez da amargura de um julgamento divisivo, permita que o país avance com essas questões”.15
Apesar de não ter havido qualquer pedido de desculpas públicas por parte da Fox à Dominion, o porta-voz da empresa indenizada pelo acordo disse que os termos da solução consensual eram suficientes. “Um pedido de desculpas é sobre responsabilidade, e hoje a Dominion responsabilizou a Fox. A Fox pagou um acordo histórico e emitiu uma declaração reconhecendo que as declarações sobre Dominion eram falsas”. Segundo o mesmo porta-voz, os funcionários que estavam na empresa desde a eleição de 2020 ficaram emocionados e aliviados com o resultado, que representou alguma validação externa no sentido de que as alegações disseminadas pela Fox sempre foram falsas.
O acordo também causou alívio para a Fox, que seu viu poupada de uma provável condenação histórica e de uma iminente e péssima hiperexposição pública que preocupava todos os seus funcionários e, em especial, Rupert Murdoch,16 que certamente seria convocado para ser ouvido pelo tribunal do júri.
O acordo, todavia, não terá sido o fim da história para nenhuma das empresas: a Fox enfrenta outro processo de difamação da Smartmatic USA, que pediu US$ 2,7 bilhões de indenização.17 A Dominion está processando indivíduos e grupos que divulgaram informações falsas sobre seus produtos após a eleição norte-americana, incluindo o One America News e os aliados de Donald Trump, Rudy Giuliani, Sidney Powell e Mike Lindell.
Nos Estados Unidos, a solução consensual do caso Dominion Voting Systems v. Fox News tem gerado diversas discussões e críticas crescentes, sobretudo pela confidencialidade atribuída aos termos do acordo.
Soma-se à não revelação da íntegra dos termos do acordo, ainda, a ausência de uma “responsabilização pública” da Fox News perante os eleitores norte-americanos – também vitimados pelas dolosas fake news que, em muitos casos, podem tê-los feito optar pelo então candidato à presidência, Donald Trump. Segundo muitos analistas, a afetação de terceiros impediria a confidencialidade do acordo.
O tema da confidencialidade dos acordos – ainda que encetado por entidades privadas – é de enorme relevância também para o sistema de justiça brasileiro, na medida em que as alternative dispute resolution começam a proliferar, predispostas a solucionar consensualmente não apenas conflitos privados, mas também conflitos envolvendo o Poder Público e direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.
Por tais motivos, nossa próxima coluna abordará especialmente a confidencialidade das ADR’s no sistema de justiça norte-americano.
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1 Venturi, Thaís Goveia Pascoaloto. A institucionalização do sistema de Justiça multiportas no Brasil. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-privado-no-common-law/333227/a-institucionalizacao-do-sistema-de-justica-multiportas-no-brasil. Acesso em 12 de agosto de 2023.
2 Conforme o último relatório Justiça em Números, publicado em 2022 e capturando dados colhidos no ano de 2021, o índice geral médio de acordos nos processos judiciais foi de 11,9%. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números 2022. Disponível aqui. Acesso em agosto de 2023.
3 JUSTIA. The Superior Court of The State of Delaware. Disponível aqui. Acesso em 13 de agosto de 2023.
4 Idem.
5 The Wall Street Journal. Fox to Pay $787.5 Million to Settle Dominion’s Defamation Lawsuit. Disponível aqui. Acesso em 12 de agosto de 2023.
6 The Washington Post. Fox was resigned to a tough trial. Then, a secret mediator stepped in. Disponível aqui. Acesso em 12 de agosto de 2023.
7 The New York Times. Fox disputes possible damages as Judge Delays defamation trial. Disponível aqui. Acesso em 13 de dezembro de 2023.
8 JAMS Mediation, Arbitration and ADR Services. Disponível aqui. Acesso em 13 de agosto de 2023.
9 The Washington Post, idem.
10 Idem.
11 The Wall Street Journal. The Man Who Settled the Fox-Dominion Defamation Case From a Romanian Tour Bus. Disponível aqui. Acesso em 13 de agosto de 2023.
12 Idem.
13 JUSTIA. The Superior Court of The State of Delaware. Disponível aqui. Acesso em 13 de agosto de 2023.
14 Idem.
15 Fox News Media. Fox news and Dominion Voting Systems reach settlement. Disponível aqui. Acesso em agosto de 2023.
16 Rupert Murdoch é acionista majoritário da News Corp, um dos maiores grupos midiáticos do mundo, tendo sido foi classificado como a 32ª pessoa mais poderosa do mundo e a 76ª maior fortuna do mundo – Revista Forbes. Rupert Murdoch & family. Disponível aqui. Acesso em agosto de 2023.
17 REUTERS. Fox resolves Dominion case, but $2.7 billion Smartmatic lawsuit looms. Disponível aqui. Acesso em agosto de 2023.
Artigo originalmente publicado em: https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-privado-no-common-law/392039/mediacao-no-maior-acordo-indenizatorio-por-difamacao-dos-eua