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O marketing jurídico – Parte I

O marketing jurídico – Parte I
Thaís G. Pascoaloto Venturi
segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Conforme já tivemos oportunidade de salientar em colunas anteriores, a reciprocidade das influências entre os sistemas de common law e de civil law nunca foram tão marcantes como na atualidade. Muito embora subsistam profundas diferenças entre os referidos sistemas, a aparente incompatibilidade – tradicionalmente fundamentada em supostas e inconciliáveis visões de mundo, cede espaço à uma gradativa e necessária aproximação.

Nesse sentido, um tema que merece melhor reflexão a partir das possíveis influências derivadas do sistema de common law diz respeito à viabilidade e aos limites da publicidade dos serviços de advocacia veiculadas pelos profissionais.

Nesta primeira parte, analisaremos de que forma houve o gradativo reconhecimento jurisdicional da licitude da veiculação de publicidade por parte dos advogados nos EUA, a partir da garantia constitucional da liberdade de expressão, bem como sua subsequente regulação pela American Bar Association.

Trata-se de investigação de relevante valia para o sistema de justiça brasileiro, que possui um sistema diametralmente oposto.

Precedentes dos EUA: Caso Bates vs State Bar of Arizon e Caso Jacoby v. State Bar

Anúncios publicitários eram proibidos para advogados nos Estados Unidos até meados da década de 1970. Isso começou a mudar a partir do julgamento do caso Bates vs State Bar of Arizona (1977), no âmbito do qual a Suprema Corte americana entendeu inconstitucional a vedação da publicidade aos advogados, por violação à First Amendment to the United States Constitution – que consagra o direito à liberdade de expressão.

No caso em questão, advogados licenciados e membros da Ordem dos Advogados do Estado do Arizona foram acusados ??de violar regras disciplinares que proibiam anúncios publicitários em jornais ou outras mídias. A reclamação foi baseada em um anúncio de jornal veiculado por advogados oferecendo “serviços jurídicos a preços muito razoáveis” e listando seus honorários para certos serviços.  A Suprema Corte do Arizona, confirmando a conclusão de um comitê de advogados, afirmou a ilicitude da conduta.1

A Suprema Corte norte-americana, por sua vez, reanalisando o caso, desmistificou diversas questões relativas à publicidade na advocacia, entendendo que: i) o caso não envolvia publicidade quanto à qualidade dos serviços jurídicos, mas sim se os advogados poderiam anunciar os preços pelos quais determinados serviços de rotina seriam executados; ii) a crença de que os advogados estão de alguma forma acima do “comércio” é um anacronismo, e um advogado anunciar seus honorários não prejudicará o verdadeiro profissionalismo; iii) a publicidade de serviços jurídicos não é inerentemente enganosa. Apenas serviços de rotina se prestam à publicidade e, para esses serviços, as taxas fixas podem ser estabelecidas de forma significativa, como demonstra o próprio Programa de Serviços Jurídicos da Ordem dos Advogados do Estado do Arizona.2 Com base nessas premissas, o entendimento da Suprema Corte foi de que a publicidade de serviços legais se enquadrava no escopo da proteção da Primeira Emenda.

Outro precedente a respeito do tema foi firmado no caso Jacoby v. State Bar (1977), envolvendo dois advogados que processaram a American Bar Association (ABA), que tentou sancioná-los por uma promoção comercial que lhes rendeu muita visibilidade na imprensa. O Tribunal Superior da Califórnia decidiu que proibir os advogados de se promover através de entrevistas violava o direito à liberdade de expressão.3

O caso em questão envolveu os advogados Meyers e Jacoby que, em 1972, abriram um escritório de advocacia denominado Clínica Jurídica de Jacoby e Meyers, com o intuito de fornecer serviços jurídicos de baixo custo para aqueles que, nada obstante não atendessem aos padrões de indigência dos programas de assistência jurídica, não eram abastados o suficiente para contratar a maioria dos escritórios de advocacia.

A divulgação dos pacotes de serviços ofertados pelos advogados atraiu a atenção do presidente de uma organização estadual de consumidores, que decidiu disseminar o conceito da referida clínica num grande evento com participação de diversos representantes da mídia. Esse evento gerou grande repercussão, oportunizando aos advogados participação em várias entrevistas a respeito do funcionamento da clínica de serviços jurídicos. Por conta da grande visibilidade pública atingida, das entrevistas concedidas e pelo uso da denominação “Clínica Jurídica”, a Ordem dos Advogados do Estado iniciou processos disciplinares contra os advogados responsáveis.

Apreciando referido caso – e já com fundamento no precedente anteriormente citado -, a Suprema Corte dos EUA considerou que a publicidade veiculada pelos advogados, não sendo falsa ou enganosa, representa divulgação comercial amparada constitucionalmente pela cláusula da liberdade de expressão, que permite o marketing jurídico desde que não se revele, concretamente, enganoso.

Em que pese o entendimento da Suprema Corte norte-americana acerca da licitude da veiculação de publicidade comercial por parte dos advogados com fundamento na proteção constitucional da liberdade de expressão, o tema sempre se revelou delicado. Trata-se de verificar, para além do cabimento do marketing jurídico, os limites razoáveis de tal prática a fim de parametrizar a publicidade pelos profissionais da advocacia, regulando-se o marketing a partir de balizas éticas mínimas, fora das quais passe a incidir sanções disciplinares.4

De acordo com Thomas D. Morgan, professor da George Washington University e que atua como consultor em questões envolvendo ética profissional na advocacia, a veiculação de marketing jurídico, por si só, não ofende a ética dos advogados, desde que não se revele enganosa. Segundo o jurista, ainda, na atualidade seria inimaginável um sistema de justiça sem as referidas práticas.5

Regulamentação do marketing jurídico pela American Bar Association – Model Rules of Professional Conduct – Table of Contents

Diante das diversas discussões suscitadas pelo tema da publicidade comercial dos serviços jurídicos, a American Bar Association estabeleceu uma série de regras de conduta profissional que passaram a servir de base regulatória para todo o país.

Assim, de acordo a regra 7.1 do Model Rules of Professional Conduct – Table of Contents da American Bar Association6 (que trata especificamente acerca da comunicação concernente aos serviços advocatícios), ao advogado é vedada qualquer comunicação falsa ou enganosa sobre ele mesmo ou sobre seus serviços (“a lawyer shall not make a false or misleading communication about the lawyer or the lawyer’s services”).

Conforme referido dispositivo, ainda, uma comunicação publicitária deve ser considerada falsa ou enganosa “if it contains a material misrepresentation of fact or law, or omits a fact necessary to make the statement considered as a whole not materially misleading.”7

Como se percebe, o que se proíbe não é a prática da publicidade em si, mas o que se noticia por via dela. Destaca-se, inclusive, que o termo “communication” sobre os serviços legais substitui as expressões marketing e advertisement que eram utilizadas anteriormente.

Por outro dispositivo (regra 7.2), o Model Rules permite a comunicação de forma ampla e irrestrita através de qualquer mídia (“Communications Concerning a Lawyer’s Services: Specific Rules (a) A lawyer may communicate information regarding the lawyer’s services through any media).”8

Insere-se na referida normativa a proibição aos advogados de oferecer pagamentos ou qualquer outra forma de recompensa pela indicação de seus serviços. Autoriza-se, contudo, a contratação, pelo próprio advogado, de serviços de propagandas ou comunicações – viabilizando, portanto, que uma empresa de publicidade seja responsável por seus anúncios.

Ainda, há previsão de que o profissional só pode anunciar que é especialista em determinada área se: i) o advogado foi certificado como especialista por uma organização aprovada por uma autoridade apropriada do estado ou do Distrito de Columbia ou de um território dos EUA ou que foi credenciada pela American Bar Association; ii) o nome da entidade certificadora está claramente identificado na comunicação.

A despeito do posicionamento da Suprema Corte norte-americana e da regulação providenciada pela American Bar Association sobre o marketing jurídico, ainda são frequentes ao longo do país práticas ilegais veiculadas em anúncios comerciais, o que forçou a ABA a expedir diversas 10 recomendações a respeito do tema, quais sejam:

“1. A publicidade do advogado deve encorajar e apoiar a confiança do público na competência e integridade do advogado individual, bem como o compromisso da profissão jurídica em atender às necessidades jurídicas do público na tradição do direito como profissão erudita;

2. Uma vez que a publicidade pode ser o único contacto que muitas pessoas têm com os advogados, a publicidade dos advogados deve ajudar o público a compreender os seus direitos legais e o processo judicial e deve defender a dignidade da profissão de advogado;

3. Embora “dignidade” e “bom gosto” sejam termos passíveis de interpretação subjetiva, os advogados devem considerar que a publicidade que reflete os ideais declarados pela ABA provavelmente será digna e adequada à profissão;

4. Uma vez que a publicidade deve ser verdadeira e precisa, e não falsa ou enganosa, os advogados devem perceber que a publicidade ambígua ou confusa pode ser enganosa;

5. Deve-se ter um cuidado especial na descrição de taxas e custos nos anúncios. Se um anúncio indica uma taxa específica para um determinado serviço, deve deixar claro se todos os problemas desse tipo podem ou não ser tratados por essa taxa específica. Cuidados semelhantes devem ser tomados na descrição das áreas de atuação do advogado;

6. Os advogados devem considerar que o uso de música dramática inadequada, slogans impróprios, porta-vozes hawkish, ofertas premium, rotinas espalhafatosas  ou configurações estranhas na publicidade não inspira confiança no advogado ou na profissão legal e mina o propósito sério dos serviços jurídicos e o sistema judicial;

7. A publicidade desenvolvida com uma identificação clara de seu público potencial tem maior probabilidade de ser compreensível, respeitosa e adequada a esse público e, portanto, mais eficaz. Os advogados devem considerar o uso de profissionais de publicidade e marketing para ajudar a identificar e alcançar um público adequado;

8. A publicidade que transmite sua mensagem é tão importante quanto a própria mensagem. Os advogados devem considerar o uso de consultores profissionais para ajudá-los a desenvolver e apresentar uma mensagem clara ao público de maneira eficaz e apropriada;

9. Os advogados devem conceber a sua publicidade de forma a atrair assuntos jurídicos para os quais tenham competência; e

10. Os advogados devem se preocupar em tornar os serviços jurídicos mais acessíveis ao público. A publicidade de advogados pode ser projetada para construir bases de clientes, de modo que eficiências de escala possam ser alcançadas que se traduzam em serviços jurídicos mais acessíveis.”9

Limites da publicidade dos advogados – O caso Florida Bar v. Went for It, Inc., et al.

Atualmente, a discussão a respeito dos limites do marketing jurídico nos EUA se direciona especialmente aos advogados de personal injury – que frequentemente se utilizam de uma forma de captação de clientes abusiva, através de um assédio direto às vítimas e com formas de  publicidade agressiva por via da televisão, outdoors e outras formas de mídia. Nesse campo, gradativamente vêm sendo determinadas algumas restrições às práticas de marketing consideradas abusivas.

Exemplo dessas restrições pode ser colhido do julgamento, pela Suprema Corte dos EUA, do caso Florida Bar v. Went for It, Inc., et al, no Estado da Flórida, ocasião na qual proibiu-se aos advogados que atuam na área de reparação por danos pessoais o envio de publicidade por via de mala direta direcionadas às vítimas e seus parentes num período compreendido até 30 dias após a ocorrência de um acidente ou desastre.10

Conforme referido julgamento, “há um interesse substancial tanto em proteger a privacidade e a tranquilidade das vítimas de danos pessoais e seus entes queridos contra o contato invasivo e não solicitado por advogados quanto em evitar a erosão da confiança na profissão que essas repetidas invasões engendraram.”

É interessante destacar que, na apreciação do referido caso, foi levado em consideração estudo realizado pela Florida Bar a respeito dos efeitos da publicidade na opinião pública. Referido estudo contém dados estatísticos e anedóticos que apoiam as alegações da Ordem dos Advogados, no sentido de que a opinião pública do estado da Flórida considera as publicidades de advogados via mala direta logo após a ocorrência de acidentes como uma inapropriada intrusão na privacidade – o que reflete negativamente sobre a visão que se tem sobre a advocacia.

Na sequência da presente coluna, investigaremos como o tema referente à publicidade dos advogados têm se desenvolvido em países da civil law (com ênfase no sistema de justiça brasileiro), a fim de se avaliar seus limites e perspectivas.

__________

1 Justia US Supreme Court. Disponível em https://supreme.justia.com/cases/federal/us/433/350/. Acesso em 06 de agosto de 2022. A Primeira Emenda veda a promulgação de leis que impeçam o livre exercício de qualquer religião, que restrinjam a liberdade de expressão, que violem a liberdade de imprensa, que interfiram no direito de se reunir pacificamente em associações e que proíbam o direito de petição a órgãos do governo.

2 Idem.

3 Justia US Law. Disponível aqui. Acesso em 06 de agosto de 2022.

4 BORTOFF, Sarah. Advertising Rules Every Lawyer Should Know: The Do’s and Don’ts of Marketing Your Law Firm. The National Law Review, Volume XI, Number 344. Disponível aqui. Acesso em 09 de agosto de 2022.

5 The George Washington Law. Morgan, Thomas. Disponível aqui. Acesso em 09 de agosto de 2022. E, ainda, Ética profissional – advogado pode anunciar, só não pode enganar. Acesso em 09 de agosto de 2022.

6 No sistema norte-americano quem regulamenta a profissão de advogado são associações denominadas “bar associations”, sendo que cada estado pode ter a sua própria associação, com regras e modelos que podem variar de estado para estado. Destaca-se que a ABA (American Bar Association) é a mais antiga instituição privada de advogados que atua a nível federal, tendo sido fundada em agosto de 1878. ABA. Disponível aqui. Acesso em 07 de agosto de 2022. Consultar, ainda, ALMEIDA, Gregório Assagra. O sistema jurídico nos estados unidos – common law e carreiras jurídicas (judges, prosecutors e lawyers): o que poderia ser útil para a reforma do sistema processual brasileiro? Revista de Processo. V. 251, Jan.,2016. Disponível aqui. Acesso em 06 de agosto de 2022.

7 American Bar Association . Disponível aqui. Acesso em 07 de agosto de 2022.

8 American Bar Association. Disponível aqui. Acesso em 07 de agosto de 2022.

9 American Bar Association. Disponível aqui. Acesso em 06 de agosto de 2022.

10 Justia US Supreme Court. Diponível aqui. Acesso em 09 de agosto de 2022

Artigo originalmente publicado em: https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-privado-no-common-law/371549/o-marketing-juridico–parte-i