Os desafios regulatórios para a proteção dos consumidores frente às práticas abusivas nas vendas de ingressos para shows no Brasil e nos EUA
Thaís G. Pascoaloto Venturi
segunda-feira, 26 de junho de 2023
Recentemente, causou alvoroço no Brasil a comercialização dos ingressos para o show da cantora norte-americana Taylor Swift. Milhares de fãs se revoltaram quando a organizadora do evento – a empresa Tickets For Fun – anunciou que só havia bilhetes suficientes para as pessoas que estavam no primeiro bolsão da fila, momento em que um grupo de fãs começou a derrubar grades, numa tentativa de invadir a parte mais próxima dos guichês de venda. Policiais militares e seguranças do local tiveram que intervir para conter o público.
A confusão e a revolta dos consumidores não ocorreram apenas com o público que tentava adquirir presencialmente os ingressos. De acordo com o Procon-SP, apesar de os ingressos terem se esgotado em poucas horas nos canais oficiais, estariam sendo anunciados e vendidos em sites não oficiais a preços muito superiores, em evidente prática ilegal de cambismo digital.
O Procon-SP informou que notificou a empresa de vendas oficial do show – a Tickets For Fun -, solicitando-lhe esclarecimentos acerca dos problemas relatados pelos consumidores.1 Paralelamente, a deputada federal Erika Hilton (PSOL) representou junto ao Ministério Público de São Paulo a ampliação da investigação já existente sobre shows comercializados pela empresa Eventim, com o intuito de também incluir a empresa Tickets For Fun.
Nos EUA, a situação não foi diferente.
Quando Taylor Swift anunciou sua primeira turnê em cinco anos, a venda de ingressos para o show foi caótica. No processo de pré-vendas, os usuários precisavam baixar um código de verificação para comprar os ingressos, que supostamente serviria para eliminar bots. Horas após o lançamento do código, 3,5 milhões de solicitações foram realizadas. Depois disso, o sistema entrou em colapso e a Ticketmaster teve que cancelar as vendas.
Muitos dos que tiveram a sorte de garantir os ingressos foram cobrados com taxas extras. Logo após a abertura da pré-venda, alguns ingressos já estavam sendo listados em sites de revenda, como o StubHub, por até US$ 33.500 cada. A Ticketmaster possui um sistema de preços dinâmico, que define valores dos ingressos com base na demanda e permite a revenda de ingressos, o que beneficia os cambistas.
A advogada Jennifer Kinder, uma swiftie de longa data, passou por todos os obstáculos da pré-venda tentando conseguir ingressos para si e para sua filha pré-adolescente. O caos dessa experiência a levou a propor uma demanda contra a Ticketmaster, contando com mais de 300 queixosos.2
As pré-vendas foram tão confusas que a Ticketmaster e sua controladora – a Live Nation Entertainment – cancelaram a venda geral de entradas alegando que a demanda havia sido tão alta que o estoque acabou. Há uma estimativa de que mais de 14 milhões de pessoas tentaram adquirir os ingressos. Com o cancelamento das vendas oficiais da “The Eras Tour”, a Live Nation viu suas ações caírem quase 8%, maior queda diária do mês, e acumula um desempenho negativo de -43% no ano.3
Investigação sobre monopólio – Comitê Judiciário dos EUA
Diante da confusão gerada com as vendas de ingressos de Taylor Swift, e por não se tratar da primeira vez que a empresa Ticketmaster se viu acusada de manipulação de vendas de ingressos, o Senado dos EUA convocou uma audiência em seu Comitê Judiciário.4
O pano de fundo da discussão envolve a polêmica em torno da Live Nation Entertainment e a sua subsidiária Ticketmaster, que se fundiram em 2010 e passaram a controlar o mercado de bilheterias virtuais. Os senadores investigam se, depois da referida fusão, as empresas criaram um verdadeiro monopólio – por serem duas gigantes do ramo.
A presidente do subcomitê antitruste do Senado, a senadora americana Amy Klobuchar, afirmou ter sérias preocupações com a atuação da Ticketmaster, na medida em que o poder da empresa desfavorece a competição. A falta de concorrência praticamente afasta que as empresas continuem inovando para atrair o público e, no final, são os consumidores que pagam o preço.
Na audiência no Senado, o presidente e diretor financeiro da empresa Live Nation Entertainment, Joe Berchtold, pediu desculpas aos fãs e à Taylor Swift pela confusão causada. “Em retrospectiva, há várias coisas que poderíamos ter feito melhor – incluindo escalonar as vendas por um período de tempo mais longo e fazer um trabalho melhor para ajustar as expectativas dos fãs para conseguir ingressos”.5
Em sua defesa, a empresa Ticketmaster argumenta que os bots usados pelos cambistas teriam sido a causa do problema, culpando, ainda, o tráfego sem precedentes na web.
De acordo com o músico Clyde Lawrence, que se pronunciou em nome dos artistas, “devido ao controle da Live Nation em toda a indústria, praticamente não temos influência na negociação [com] eles, se eles quiserem pegar 10% das receitas e chamar isso de ‘taxa de instalação’, eles podem, e têm… E se eles querem nos cobrar US$ 250 por uma pilha de dez toalhas limpas, eles podem, e têm… Em um mundo onde o promotor e o local não são afiliados um ao outro, podemos confiar que o promotor procurará obter o melhor negócio do local. No entanto, neste caso, o promotor e o local fazem parte da mesma entidade corporativa.”6
Lawrence também refutou as alegações da Ticketmaster de que os artistas definem estratégias de preços, dizendo: “Para ser claro, não temos absolutamente nenhuma opinião ou visibilidade sobre o valor dessas taxas. Descobrimos da mesma forma que todos os outros, entrando no Ticketmaster assim que o show já estiver à venda. E caso você esteja se perguntando, não, nós, os artistas, não recebemos um centavo dessa taxa.”
O senador republicano Mike Lee declarou que a investigação da Ticketmaster destacou a importância de avaliar se “uma nova legislação ou talvez apenas uma melhor aplicação das leis existentes pode ser necessária para proteger o povo americano”.
Desafios regulatórios nos EUA
A audiência no Senado não é a única investigação direcionada à Live Nation Entertainment. De acordo com o New York Times, o Departamento de Justiça havia iniciado uma investigação antitruste sobre a empresa.7
Esta não é a primeira vez que a conduta da Ticketmaster é examinada pelo Congresso. Além de uma audiência no Senado, ocorrida em 2009 antes da fusão Ticketmaster-Live Nation, no ano de 1994 um subcomitê da Câmara realizou uma audiência sobre a Ticketmaster depois que a banda Pearl Jam apresentou uma queixa ao Departamento de Justiça.
O gerente da banda Aerosmith, Tim Collins, também testemunhou na audiência, quando afirmou: “Steven Tyler, vocalista do Aerosmith, me disse: ‘Mussolini pode ter feito os trens funcionarem no horário, mas nem todos conseguiram um assento no trem’. Esse é o problema que o Aerosmith e eu temos com a Ticketmaster. Sim, eles têm um sistema eficiente e lucrativo, mas seus aspectos monopolistas são injustos e prejudiciais.”8
Os principais marcos regulatórios antitruste nos EUA são bem antigos, incluindo a Lei do Comércio Interestadual (1887), a Lei Sherman (legislação de referência sobre o tema, de 1890), a Lei Clayton (1914) e a Lei Federal da Comissão de Comércio (1914). A fiscalização a respeito do cumprimento das referidas legislações cabe à agência Federal Trade Commission e ao Departamento de Justiça dos EUA.9
A Lei Sherman proíbe “todo contrato, combinação ou conspiração para restringir o comércio” e qualquer “monopolização, tentativa de monopolização ou conspiração ou combinação para monopolizar”. Há muito tempo a Suprema Corte norte-americana decidiu que referida Lei não proíbe todas as restrições ao comércio, apenas aquelas que não são razoáveis. Por exemplo, em certo sentido, um acordo entre dois indivíduos para formar uma parceria restringe o comércio, mas só não pode fazê-lo de forma irracional. Portanto, pode ser legal de acordo com as leis antitruste.
Por outro lado, certos atos são considerados tão prejudiciais à concorrência que quase sempre são qualificados como ilegais. Isso inclui acordos simples entre indivíduos ou empresas concorrentes para fixar preços, dividir mercados ou fraudar licitações. Esses atos são violações per se da Lei Sherman.10
Especialistas no tema afirmam que, nos anos 90, ainda não havia monopólio na área, na medida em que existiam outras empresas concorrentes, como o StubHub e a própria Live Nation. Todavia, com a fusão ocorrida em 2010, a Ticketmaster passou a deter mais de 70% do mercado de serviços primários de vendas de ingressos para as grandes casas de shows dos EUA.11
Diante desse cenário, em 26 de abril de 2023, os senadores Amy Klobuchar e Richard Blumenthal apresentaram o projeto do Unlock Ticketing Markets Act – Lei de Mercados de Ingressos Desbloqueados, que visa regular especificamente os controversos contratos de exclusividade plurianuais que a Ticketmaster costuma usar.12
A esse referido projeto de Lei se agrega ainda outro, apresentado em 25 de abril de 2023, que obriga as plataformas de ingressos a mostrar um preço que inclua todas as taxas cobradas, uma prática conhecida como preço total. A chamada “Lei de Transparência nas Cobranças de Ingressos para Eventos Chave” (The Ticket Act) foi apresentada pelos senadores Maria Cantwell e Ted Cruz.13
Esses projetos de Lei apresentados seguem o exemplo do Estado de Nova York, que já aprovou uma legislação significativa em torno do negócio de venda de ingressos, exigindo que as empresas mostrem todas as suas taxas antecipadamente e divulguem o valor nominal original de um ingresso quando ele estiver sendo revendido.14
A Lei de Defesa do Consumidor de Nova York proíbe práticas comerciais desleais ao lidar com bens ou serviços de consumo – como propaganda enganosa, vendas falsas e ofertas especiais com condições ocultas, também estabelecendo regras de conduta adequadas na cobrança de dívidas de consumo.15 Assim, vendedores e revendedores são obrigados a divulgar antecipadamente uma etiqueta de preço all-in e são impedidos de exibi-la em um tamanho de fonte menor.
Referida Lei (S.9461/A.10500) também aumenta as multas civis pelo uso de bots cambistas e softwares de compra de ingressos, proíbe a revenda de ingressos gratuitos (embora ainda possam ser legalmente transferidos para outra pessoa), proíbe taxas de entrega por ingressos entregues eletronicamente ou impressos em casa e exige que os vendedores deixem claro aos compradores quando um ingresso está sendo revendido e divulguem o preço original do ingresso.16
Desafios regulatórios no Brasil
No Brasil, algumas iniciativas parlamentares buscam regular o tema.
O Projeto de Lei nº 2.942/22, que tramita na Câmara dos Deputados, limita a quantidade de ingressos que podem ser comprados pela internet para eventos abertos ao público. Pelo texto, fica proibida a venda de mais de quatro ingressos por CPF e mais de 12 por CNPJ para cada data da realização do evento.17
Por outro Projeto de Lei (3.145/2023), também da Câmara dos Deputados, objetiva-se alterar o Código de Defesa do Consumidor para regulamentar a venda de ingressos online de shows e eventos. De acordo com a proposta, a comercialização de ingressos deverá ser feita por pessoa jurídica, diretamente ao consumidor, vedada a revenda para terceiros com valores superiores aos valores de face do ingresso. Ainda, regula-se a disponibilização da posição do comprador na fila de aquisição, a limitação justificada de venda de ingressos para um mesmo CPF ou CNPJ e disponibilização, no site de compra, de informações sobre política de devolução e reembolso de ingressos.18
Os problemas referentes às vendas de ingressos para o show de Taylor Swift no Brasil também induziram iniciativas do parlamento brasileiro no âmbito criminal.
A deputada federal paulista Simone Marquetto (MDB-SP) apresentou um Projeto de Lei (PL 3120/2023) com o objetivo de criminalizar a venda de ingressos por cambistas, objetivando proteger a economia popular. Identificado como “Lei Taylor Swift”, a proposta sugere pena de reclusão de um a quatro anos, além de pagar multa de até cem vezes o valor dos ingressos apreendidos ou anunciados.19
Ainda, o deputado federal Pedro Aihara apresentou um Projeto de Lei (PL 3115/2023) que criminaliza o “Cambismo Digital” e protege a economia popular em eventos esportivos, de diversão, lazer e negócios. Dentre outras regulações, o PL proíbe a venda de ingressos por valores superiores aos originais, além de estabelecer a tipificação e punição pelo crime do chamado “cambismo digital”.20
Como se percebe, os desafios da regulação da venda de ingressos para shows de entretenimento são mundiais, envolvendo, dentre outras questões, a investigação de práticas abusivas, da formação de monopólios e do fomento de cambismo digital em detrimento de milhões de consumidores que, invariavelmente, ou se veem frustrados em suas expectativas de assistir a um espetáculo dos sonhos, ou acabam pagando preços extorsivos.
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1 PROCON – SP. Disponível aqui. Acesso em junho de 2023.
2 TIME MAGAZINE. What Happened During Congress’ Hearing on Ticketmaster and the Taylor Swift Concert Mess. Disponível aqui. Acesso em junho de 2023.
3 Informação divulgada pela empresa XP Investimentos. Disponível aqui. Acesso em junho de 2023.
4 Senate hearing on Ticketmaster business practices following Taylor Swift ticket issues. Disponível aqui. Acesso em junho de 2024.
5 Idem.
6 Idem.
7 THE NEW YORK TIMES. Ticketmaster Cast as a Powerful ‘Monopoly’ at Senate Hearing. Disponível aqui. Acesso em junho de 2023.
_________. At Ticketmaster Hearing, Taylor Swift Lyrics Were the Headliner. Disponível aqui. Acesso em junho de 2023.
8 Idem.
9 FEDERAL TRADE COMISSION. THE ANTITRUST LAWS. Disponível aqui. Acesso em junho de 2023.
10 Idem.
11 De acordo com Carl Szabo, vice-presidente e general counsel of NetChoice: “Este é um caso antitruste por slam dunk sob a lei antitruste atual, incluindo outras violações antitruste como o abuso de poder de mercado (ou seja, forçar artistas a usar a plataforma Ticketmaster) e danos ao consumidor (ou seja, qualidade reduzida e taxas mais altas)”.
12 Unlock Ticketing Markets Act of 2023. Disponível aqui. Acesso em junho de 2023.
13 The Ticket Act. Disponível aqui. Acesso em junho de 2023.
14 Consumer Protection Law. Disponível aqui. Acesso em junho de 2023.
15 Eric T. Schneiderman, Obstructed View: What’s Blocking New Yorkers from Getting Tickets, New York State Attorney General’s Office, Disponível aqui. Acesso em junho de 2023.
16 Disponível aqui. Acesso em junho de 2023. E, ainda aqui. Acesso em junho de 2023.
17 Câmara dos Deputados. Disponível aqui. Acesso em junho de 2023.
18 Câmara dos Deputados. Disponível aqui. Acesso em junho de 2023.
19 Câmara dos Deputados. Disponível aqui. Acesso em junho de 2023.
20 “Art. 2º Fica tipificado como crime o cambismo digital, entendido como a prática de revenda ilegal de ingressos de eventos esportivos, de diversão, lazer e negócios por meio de plataformas online, aplicativos, redes sociais ou qualquer outra forma digital. Parágrafo único: Configura-se o crime de cambismo digital quando o agente adquire ou revende os ingressos com o intuito de obter preços superiores aos fixados pelas entidades promotoras do evento.” Disponível aqui. Acesso em junho de 2023.
Artigo originalmente publicado em: https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-privado-no-common-law/388794/praticas-abusivas-nas-vendas-de-ingressos-de-shows-no-brasil-e-nos-eua