Os termos de uso: você já leu?
Thaís G. Pascoaloto Venturi
quinta-feira, 14 de dezembro de 2023
A funcionalização do Direito Civil marca uma série de avanços e conquistas, fruto das relações sociais vivenciadas no século XXI. Especificamente no âmbito das relações contratuais, verifica-se uma gradativa mudança que foi se amoldando às necessidades prioritárias de cada época, sendo justamente a sua mutabilidade um dos seus traços mais marcantes.
Nesse contexto, destaca-se a sua funcionalização – marcada pela função social dos contratos, pelos deveres de informação1, de transparência, de cooperação e da boa-fé objetiva, dentre outros.
Muitas dessas conquistas, todavia, continuam obscurecidas quando se trata da imposição dos Termos de Uso dos aplicativos ou plataformas digitais, instrumentalizados por “nuvens virtuais” que ninguém alcança.
Os Termos de Uso constituem verdadeiro contrato de adesão, gratuito, bilateral e atípico, geralmente sendo conhecidos como “termos de uso” (“terms of use”), “acordo do usuário” (“user agreement”), “condições de uso” (“conditions of use”), “avisos legais” (“legal notices”), “termos” (“terms”) ou “termos e condições de uso” (“terms and conditions of use”).
Referido contrato é geralmente apresentado ao usuário/consumidor no momento do acesso ou da utilização do serviço definido unilateralmente pelo provedor de aplicação, e seu objetivo é definir as responsabilidades, obrigações e direitos das partes envolvidas, não sendo possível ao usuário qualquer possibilidade de negociação.
A cada aplicativo baixado ou site que se navega, as pessoas aceitam, expressa ou tacitamente, os Termos de Uso e as políticas de privacidade impostos pela plataforma para que possam ter acesso ao aplicativo, restando ao usuário/consumidor anuir com as avenças minuciosamente detalhadas, sob pena de não ter acesso à plataforma.
De acordo com o site de pesquisas Delloitte, cerca de 90% dos usuários/consumidores aceitam os termos e condições de aplicativos sem sequer lê-los. Aqueles que os acessam, não o fazem na íntegra.2
Inúmeras são as razões que explicam tal fenômeno, dentre as quais, textos muito longos, dificuldades de acesso e a utilização de uma linguagem ininteligível.
Nesse panorama, destaca-se o pitoresco e conhecido caso em que a loja de jogos online Gamestation.co.uk incluiu uma disposição nos seus Termos e Condições de Uso estabelecendo a transferência da alma do usuário para a empresa. No total, 7.500 usuários não clicaram na opção de “cancelar transferência de alma” disponibilizada pelo site.3
Referida clausula foi inserida nos Termos de Uso no Dia da Mentira como uma piada, mas o empresário fez isso para deixar claro: “ninguém lê os termos e condições de compras on-line e as empresas são livres para inserir as cláusulas que quiserem nos documentos “.4
Nos Termos de Uso são determinadas as regras e condições que irão prevalecer entre uma empresa ou serviço e seus usuários, relacionando-se, basicamente: i) ao serviço prestado; ii) ao funcionamento do serviço e as regras aplicáveis a ele; iii) ao arcabouço legal relacionado à prestação do serviço; iv) às responsabilidades do usuário ao utilizar o serviço; v) às responsabilidades do provedor pelo serviço; vi) às informações para contato, caso exista alguma dúvida ou seja necessário atualizar informações e vii) ao foro responsável por eventuais reclamações caso questões deste Termo de Uso tenham sido violadas.5
Como se sabe, as condições de uso das plataformas são definidas unilateralmente pelo provedor de serviços, não possibilitando aos usuários qualquer forma de questionamento, aplicando-se de forma indiscriminada a todos.
No que se refere à gratuidade, muitas são as críticas direcionadas às plataformas digitais. Quando se trata das gigantes de tecnologia – que supostamente não cobram pelos serviços prestados -, há uma “real ausência de gratuidade”, conforme afirma Raimondo MOTRONI.6
A título de exemplo, veja-se o que se dispõe nos Termos de Uso do Meta: “Não cobramos pelo uso do Facebook ou de outros produtos e serviços cobertos por estes Termos, a menos que exista outra informação. Em vez disso, empresas, organizações e outras pessoas nos pagam para lhe mostrar anúncios dos seus produtos e serviços. Ao usar nossos produtos, você concorda que podemos mostrar anúncios que consideramos como possivelmente relevantes para você e seus interesses. Usamos seus dados pessoais para ajudar a determinar quais anúncios personalizados serão mostrados a você.”7
Como se percebe, na medida em que a maior razão de existência dessas empresas é a geração do lucro, não faz sentido que uma plataforma desempenhe suas atividades sem que exista alguma forma de contrapartida por parte dos seus usuários.8 Conforme já manifestou a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, “o fato de o serviço prestado pelo provedor de serviço de Internet ser gratuito não desvirtua a relação de consumo, pois o termo “mediante remuneração”, contido no art. 3º, § 2º, do CDC, deve ser interpretado de forma ampla, de modo a incluir o ganho indireto do fornecedor.”9
Portanto, se há remuneração, ainda que indireta, evidencia-se que a pretensa “gratuidade” dos serviços dos provedores não passa de ficção, conforme esclarece Claudia Lima MARQUES: “A ‘gratuidade’ no mercado de consumo é muitas vezes ilusória, pois há remuneração indireta (e por vezes direta e conexa) do fornecedor pela prestação daquele ‘serviço’ na sociedade de informação”.10
Um dos temas mais sensíveis atrelados aos Termos de Uso diz respeito à responsabilidade dos provedores, na medida em que se dispõe a estabelecer as isenções e limitações dos direitos dos usuários.
Não raras vezes, as condições de fornecimento dos produtos ou serviços estabelecidas nos Termos de Uso relativizam a responsabilidade dos fornecedores em relação a possíveis danos ou prejuízos causados aos usuários, seja por meio de cláusulas de total isenção de responsabilidade ou, ainda, por via de cláusulas de limitação do quantum indenizatório a um valor simbólico.
Nesse sentido, consultemos os Termos de Uso do Meta/Facebook, ao prever os limites da responsabilidade:
Trabalhamos continuamente para fornecer os melhores Produtos possíveis e especificar diretrizes claras para todos os usuários. Nossos Produtos, no entanto, são fornecidos “no estado em que se encontram”, e, na medida em que for permitido por lei, não damos nenhuma garantia de que eles sempre serão seguros, ou estarão livres de erros, ou de que funcionarão sem interrupções, atrasos ou imperfeições. No limite permitido por lei, também nos eximimos de todas as garantias, explícitas ou implícitas, inclusive as garantias implícitas de comerciabilidade, adequação a uma determinada finalidade, título e não violação. Não controlamos nem orientamos o que as pessoas e terceiros fazem ou dizem e não somos responsáveis pela conduta deles (seja online ou offline) ou por qualquer conteúdo que compartilham (inclusive conteúdo ofensivo, inadequado, obsceno, ilegal ou questionável).11
Outro exemplo, é a limitação de responsabilidade prevista na plataforma Youtube, conforme segue:
O Youtube, seus afiliados, diretores, funcionários e agentes não serão responsáveis por qualquer perda de lucros, receitas, oportunidades de negócios, boa vontade ou economias antecipadas; perda ou corrupção de dados; perda indireta ou consequente; danos punitivos causados por: 1. erros ou imprecisões no serviço; 2. lesões pessoais ou danos à propriedade resultantes do uso do serviço; 3. qualquer acesso ou uso não autorizado do serviço; 4. qualquer interrupção ou cessação do serviço; 5. qualquer vírus ou código malicioso transmitido para ou através do serviço por qualquer terceiro; 6. qualquer conteúdo, seja enviado por um usuário ou pelo youtube, incluindo seu uso do conteúdo; e/ou 7. remoção ou indisponibilidade de qualquer conteúdo. esta disposição se aplica a qualquer reclamação, independentemente de a reclamação definida se basear em garantia, contrato, delito ou qualquer outra teoria jurídica.12
No que tange às cláusulas de limitação do quantum indenizatório a um valor simbólico, destaca-se a previsão contida nos Termos de Uso da Microsoft:
Se você tiver alguma base para recuperar os danos (inclusive violação destes Termos), até a extensão permitida pela lei aplicável, você concorda que seu recurso exclusivo será recuperar, da Microsoft ou de qualquer afiliada, revendedor, distribuidor, Aplicativos de Terceiros e Provedores de Serviços e fornecedores, danos diretos até o valor equivalente ao valor pago por seus Serviços para o mês durante o qual ocorreu o prejuízo ou a violação (ou até USD$ 10,00 se os Serviços forem gratuitos).13
No Brasil, não se pode desconsiderar os avanços significativos na regulação da matéria, sobretudo a partir da Lei do Marco Civil da Internet e da Lei Geral de Proteção de Dados.
Ao tratar de dados sensíveis, a legislação nacional passou a exigir que as empresas insiram informações adequadas em suas “Políticas de Privacidade”. Delas devem constar: informações sobre qual o tratamento dos dados pessoais realizados de forma automatizada ou não, e a sua finalidade; os dados pessoais dos usuários necessários para a prestação do serviço; a forma como eles são coletados; se há o compartilhamento de dados com terceiros, e quais as medidas de segurança implementadas para proteger os dados.
Não se desconsidera que se trata de uma relação privada em que o usuário, exercendo a sua autonomia privada, aceita ou não as condições ao se cadastrar na plataforma. Assim como não se ignora o direito das empresas em estabelecer como o serviço será fornecido, assim como determinar de que modo o usuário deverá se comportar na sua utilização.
Ocorre, no entanto, que as plataformas online detêm um alto grau de controle sobre o fluxo de informações na Internet, o que lhes garante uma posição de controle e de poder social em relação aos seus usuários, na medida em que “conseguem agregar, centralizar e compreender todas as informações do mercado, o contrato deixa de ser um instrumento de alocação recíproca de riscos e torna-se forma de dominação da parte mais forte – que detém o pleno conhecimento e, portanto, não se submete propriamente ao risco do negócio – sobre a outra”.14
Por tais razões, analisando as privacy policies no contexto do sistema de justiça norte-americano, conclui o professor da Northeastern University, Ari Ezra Waldman: “O que é ainda pior é que nada disso é ilegal. Não só não existe lei contra os termos de privacidade das caixas de verificação, mas depois de décadas de hegemonia neoliberal e anti-regulatória, a conformidade legal performativa é o que se passa por governança pública. Precisamos de uma maneira totalmente nova de pensar e redigir os termos de privacidade, porque as Big Techs se tornaram muito boas em manipular leis baseadas em processos para seu próprio benefício.15
A vulnerabilidade dos usuários no ambiente virtual frente às empresas de tecnologia é de ser presumida, já a partir (mas não apenas) da assimetria informacional instrumentalizada pelos seus Termos de Uso. O desafio regulatório é imenso e de duvidosa efetividade.
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1 DIAS, Daniel. Mais do que você precisa saber: o fracasso dos deveres de informação. Direito Privado no Common Law. Disponível aqui. Acesso em dezembro de 2023.
2 Deloitte. Disponível aqui. Acesso em dezembro de 2023.
Acesso em dezembro de 2023.
3 “By placing an order via this Web site on the first day of the fourth month of the year 2010 Anno Domini, you agree to grant Us a non transferable option to claim, for now and for ever more, your immortal soul. Should We wish to exercise this option, you agree to surrender your immortal soul, and any claim you may have on it, within 5 (five) working days of receiving written notification from gamesation.co.uk or one of its duly authorised minions.” 7.500onlineshoppers unknowingly sold their souls. Fox News. Disponível aqui. Acesso em dezembro de 2023.
4 Idem. Na época dos fatos, a empresa informou que não faria cumprir os direitos e planejou enviar um e-mail aos clientes anulando qualquer reivindicação sobre suas almas.
5 Rahman, K. S. Regulating Informational Infrasctructure: Internet Plataforms as the new public utilities. Georgetown Law Technology Review, pp. 235-250. Disponível aqui. Acesso em dezembro de 2023.
6 MOTRONI, Raimondo. Gli scambi “a titolo gratuito” nelle reti telematiche. In: Ricciuto, Vincenzo; Zorzi, Nadia. Il contratto telemático. Padova: Cedam, 2002.
7 FACEBOOK. Termos de Serviço. Disponível aqui. Acesso em dezembro de 2023.
8 MARTINS, Guilherme Magalhães. Responsabilidade civil por acidente de consumo na internet. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.
9 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial n. 1.444.008, 3ª Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi, j. 25.10.2016. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial n. 1316921 RJ, 3ª Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi, j. 26.06.2012, DJe 29.06.2012.
10 MARQUES, Claudia Lima. Confiança no comércio eletrônico e a proteção do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
11 FACEBOOK. Termos de Serviço. Disponível aqui. Acesso em dezembro de 2023.
12 YouTube. Termos de Uso. Disponível aqui. Acesso em dezembro de 2023.
13 ermos de Uso da Microsoft. Limitação da Responsabilidade. Disponível aqui. Acesso em dezembro de 2023.
14 FRAZÃO, Ana. A falácia da soberania do consumidor: Economia digital pode tornar o consumidor ainda mais vulnerável, dez. 2021b. Acesso em dezembro de 2023.
15 WALDMAN, Ari Waldman. How Big Tech Turns Privacy Laws Into Privacy Theater. Disponível aqui. Acesso em dezembro de 2023.
Artigo originalmente publicado em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/398919/os-termos-de-uso-voce-ja-leu