A experiência do Direito Comparado – sobretudo do norte-americano – no manuseio dos meios alternativos de resolução de conflitos (alternative dispute resolution – ADR), assim compreendidos os métodos extrajudiciais pelos quais se alvitra a autocomposição ou a heterocomposição privada da disputa, tem muito a nos ensinar a respeito dos atuais desafios e transformações que se colocam para o sistema de justiça nacional a partir da institucionalização da justiça multiportas1.
A conciliação, a mediação, a negociação e a arbitragem, dentre outros mecanismos “alternativos” à adjudicação estatal, vêm sendo aplicadas nos Estados Unidos da América com enorme destaque há décadas, fenômeno que não apenas acarretou uma drástica diminuição dos julgamentos pelo Poder Judiciário como, também, implica profundas alterações no próprio inter-relacionamento entre os diversos operadores do sistema de Justiça.
Não apenas para o Brasil, mas também para todos os demais países de civil law, pode parecer absolutamente desconcertante a notícia de que nos Estados Unidos da América a adjudicação pelo Poder Judiciário (tanto na esfera federal como nas estaduais) atualmente ocorre para a resolução da absoluta minoria das ações ajuizadas. Vale dizer, os magistrados norte-americanos proferem sentenças de mérito excepcionalissimamente, diante do extraordinário volume de acordos (settlements) conquistados extrajudicialmente, ou, por vezes, via programas alternativos anexos às Cortes.
A solução consensual dos conflitos é inegavelmente a grande meta, o evidente objetivo em torno do qual todo o sistema de justiça dos EUA tem sido idealizado, reformado e funcionado. Nesse cenário, as sentenças judiciais, as decisões das cortes de apelação e das cortes superiores sobre o mérito das disputas (por vezes sequer publicadas justamente para tentar favorecer os acordos) são virtuais “patologias” decorrentes do indesejado insucesso das tentativas de autocomposição.
Muito embora os tribunais norte-americanos possuam competência para revisar ou anular os acordos produzidos mediante as ADR’s, estatisticamente isto raramente ocorre. Isto se deve, em grande monta, à existência de uma notória política estatal no sentido da autonomização e do empoderamento de árbitros, mediadores, conciliadores e especialistas neutros, dentre outros atores do universo dos “meios alternativos”, onde os protagonistas não são (nem desejam ser) os juízes, mas sim, os advogados.
Esta política em prol da resolução extrajudicial dos conflitos pode ser bem aferida a partir da longevidade e da dispersão da aplicação de legislações federais como a Arbitration Act (1924) e a Mediation Act (2001-2003). Da mesma forma, numerosos programas obrigatórios de utilização das ADR’s são ordenados em legislações de diversos estados dos EUA, que neles vislumbram modelo mais eficiente e adequado para resolver ou minimizar os problemas gerais que historicamente pressionam todos os sistemas jurisdicionais mundo afora (custos para as partes, tempo de duração dos processos, alocação de recursos e funcionários públicos, dentre outros).
Se parece desconcertante para um jurista brasileiro saber que o sistema de justiça norte-americano não almeja exatamente ouvir “a voz do Estado” (e não apenas nas disputas envolvendo direitos patrimoniais disponíveis), nem se preocupa demasiadamente em criar precedentes obrigatórios (que, aliás, nos EUA são a consequência e não o objetivo da prestação jurisdicional), não menos desconcertante é o exercício de um olhar interior para o sistema de justiça do Brasil, historicamente idealizado e construído para a adjudicação judicial, como se nela se resumisse a garantia de acessibilidade à justiça e a adequada tutela dos direitos.
No modelo adjudicatório, a ausência de incentivos para a realização de acordos e a promessa de uma longa duração dos processos judiciais acabam funcionando como um verdadeiro convite aos habituais geradores de conflitos sociais a apostar na morosidade e na inefetividade da tutela jurisdicional, para a consequente obtenção de evidentes vantagens.
O próprio sentido privado que ao longo da história denotou a expressão negociação parece ter se voltado contra o emprego dos mecanismos consensuais, sob a justificativa de que determinadas pessoas, grupos ou categorias simplesmente não estariam aptas a negociar, dadas suas condições de hipossuficiência econômica, política e social.
O temor da “privatização da justiça” seria razão suficiente para sempre se voltar ao Estado e suas instituições, responsáveis pela contenção dos abusos do livre mercado2.
Todavia, se não é possível minimizar as razões pelas quais ainda persistem fundadas restrições ou condicionamentos à abertura de referidos mecanismos em matéria trabalhista, nas relações de consumo ou envolvendo o Poder Público, por exemplo, também não se deve desconsiderar que a dinâmica das relações jurídicas parece comportar cada vez menos as estritas qualificações que cunharam a dicotomia público x privado, atualmente significativamente relativizada.
Tal relativização implica, também, uma nova configuração dos institutos da mediação, da conciliação, da negociação e da arbitragem que, a depender da necessidade resolutória concreta, devem passar a incorporar algumas características ínsitas ao modelo adjudicatório estatal3.
O grande desafio que se coloca para os pensadores e operadores do sistema de justiça brasileiro, portanto, parece muito mais relacionado com a definição de balizas mínimas que possam assegurar a coordenação entre jurisdição e os outros meios de solução ou regulação dos conflitos sociais, sejam eles de qual espécie forem.
Neste sentido, certamente há enorme espaço para um franco e despreconceituoso debate sobre os inúmeros aspectos técnicos envolvidos na tentativa de construção de um novo modelo de justiça multiportas, que exige a mais perfeita harmonização possível entre os mecanismos e técnicas até então rotuladas como “públicas” ou “privadas”4.
É inegável que a política da jurisdicionalização de todo e qualquer conflito acabou gerando, para o sistema de Justiça brasileiro, uma absoluta centralidade do método adjudicatório e o completo esvaziamento da utilização de outros mecanismos consensuais e extrajudiciais.
Por tal motivo, o movimento que agora se reforça no Brasil, no sentido da institucionalização da mediação, da conciliação, da negociação e da arbitragem, não deixa de revelar uma tentativa de fundar verdadeira revolução cultural relativamente ao modelo de resolução de conflitos, também (mas não apenas) forçada pela falência do sistema exclusivamente judicial5.
Mais do que isto, trata-se do reconhecimento de que os princípios da livre iniciativa e da autonomia das vontades tradicionalmente incidentes e primazes no campo do direito privado6, não apenas podem como devem incidir também no campo do direito público, mais precisamente no direito processual, no intuito de instrumentalizar o sistema de justiça.
Ressalta-se, no entanto, a necessidade de se analisar a profunda reformulação no modo de ser das relações privadas, na medida em que valores liberais, tais como os da liberdade de contratação e da livre iniciativa, por exemplo, passam a ser pautados ou influenciados também por escopos sociais de funcionalização do Direito – o que será objeto de nossas próximas colunas.
De todo modo, para que esta integração seja viável, faz-se necessário aprofundar a relativização do ideológico e já anacrônico discurso do “público versus privado”, que continua a ser um grande desafio para os juristas do século XXI e que interfere na reformulação do sistema de solução de disputas nacional.
As históricas e crescentes dificuldades conceituais a respeito de temas fundamentais, como o interesse público e o interesse privado, torna extremamente delicada a tarefa de se apontar interesses particulares absolutamente desatrelados de qualquer interrelação com o coletivo ou o social7.
Nesse cenário, a privatização da justiça por influência das ADR’s e da cultura do acordo no sistema de justiça norte-americano podem e devem ser criticadas (e o são fortemente por vasta doutrina)8, na medida em que podem significar o afastamento ou o apequenamento do controle jurisdicional, indispensável para garantir a isonomia de tratamento entre as partes em conflito, a razoabilidade do procedimento (contraditório e ampla defesa) e a justiça das soluções, para além da reafirmação do ordenamento jurídico e o norteamento da atividade parlamentar por via dos precedentes.
Mas, se nos desafiarmos a responder a poucas e singelas indagações a respeito de onde nos terá levado a histórica aposta na exclusividade da adjudicação estatal para a solução dos conflitos sociais (aproximadamente 77 milhões de processos pendentes)9, parece certo que muito pouco teremos a opor contra um movimento que busca, tardia, mas finalmente, institucionalizar os meios adequados de resolução de conflitos no Brasil.
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1 A relação existente entre os mecanismos resolutórios judiciais e os extrajudiciais não pode mais ser qualificada como de alternatividade, mas sim, de adequação. Neste sentido, Paula Costa e SILVA afirma que “se o exercício de direito de acção através de tribunais arbitrais ou de tribunais judiciais consubstancia na verdadeira relação de alternatividade, o mesmo não sucede se, de um lado, colocarmos mediação e conciliação e, de outro, exercício do direito de acção através de tribunais, sejam estes judiciais ou arbitrais. Neste caso, a única relação que, num Estado de Direito, pode legitimamente existir é uma relação de adequação. A mediação e a conciliação serão modos legítimos de resolução de conflitos se forem os modos adequados de resolução desses conflitos”. A nova face da justiça, – Os meios extrajudiciais de resolução de controvérsias. Coimbra Editora. Lisboa, 2009, p. 35.
2 Conforme FISS, “We turn to the state because it is the most public of all our institutions and because only it has the power we need to resist the pressures of the market and thus to enlarge and invigorate our politics”. Why the State? (1987). Yale Law School. Faculty Scholarship Series. Paper 1208. Disponível aqui. Acesso em 4 de setembro de 2020.
3 Segundo Giovanni COSI, a integração entre os meios alternativos de resolução de conflitos (ADR’s) e o processo judicial não se resume à “publicização” daqueles, envolvendo, acima de tudo, a construção de um novo modelo processual que venha ao encontro da proteção dos interesses das partes e do Estado. Invece di Giudicare. Scritii sulla Mediazione. Milano. Giuffre Editore, 2007, p. 40.
4 Com efeito, conforme destaca Richard C. REUBEN, as tradicionais características do modelo das alternative dispute resolution (tais como a confidencialidade e a patrimonialidade) podem e devem sofrer mutações na exata medida em que passem a ser utilizadas para a resolução de litígios que exijam maior transparência e publicidade, no intuito da afirmação do próprio ordenamento processual e material: “As arbitration continues to expand as a fixture on the landscape of civil justice, it becomes more important for participants in the process to be aware of the contours of arbitration’s relationship with the law, of the limitations of arbitration as well as its strengths. As with the discovery and admissibility of mediation communications, a rigorous inquiry is a necessary foundation for good legal policy with respect to arbitration communications. Like any alternative dispute resolution process, arbitration does not stand apart from the law, and when the two come into contact, wise policy requires a careful balancing of the needs, interests, and concerns of both institutions”. Confidentiality in Arbitration: Beyond the Myth. Kansas Law Review, Vol. 54, p. 1255, 2006; U of Missouri-Columbia School of Law Legal Studies Research Paper No. 2006-23. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=925281. Acesso em 04 de setembro de 2020.
5 Assim como o movimento contracultural da década de sessenta desafiou o sistema estatal de resolução de conflitos nos Estados Unidos da América, enaltecendo clássicos valores norte-americanos como o individualismo, o populismo, o laissez-faire e o igualitarismo (conforme sustenta Oscar G. CHASE, Direito, cultura e ritual: Sistemas de resolução de conflitos no contexto da cultura comparada. Tradução Sérgio Arenhart, Gustavo Osna. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 153), parece possível afirmar que, por diversos sejam agora os valores preponderantes na sociedade brasileira, a recente reforma legislativa nacional relativa aos procedimentos resolutórios extrajudiciais e consensuais não deixa de refleti-los e afirmá-los.
6 WEINRIB, Ernest J. The Idea of Private Law. Oxford University Press, 2012.
7 Por tal motivo, conforme Pietro PERLINGIERI, “Técnicas e institutos nascidos no campo do direito privado tradicional são utilizados naquele do direito público e vice-versa, de maneira que a distinção, neste contexto, não é mais qualitativa, mas quantitativa. Existem institutos em que é predominante o interesse dos indivíduos, mas é, também, sempre presente o interesse dito da coletividade e público; e institutos em que, ao contrário, prevalece, em termos quantitativos, o interesse da coletividade, que é sempre funcionalizado, na sua íntima essência, à realização de interesses individuais e existenciais dos cidadãos”. Perfis do direito civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 54.
8 EISENBERG, Theodore, LANVERS, Charlotte. What is the Settlement Rate and Why Should We Care? Cornell University Law School. Journal of Empirical Legal Studies, Volume 6, Issue 1, 111-146, March 2009. TRAUM, Lara, FARKAS, Brian. The history and legacy of the Pound Conferences. Cardozo Journal of Conflict Resolution, Vol. 18:677, 677-698, May, 2017.
9 Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números 2020 (ano-base 2019). 16ª edição. Destaca-se, no entanto, que em termos absolutos, o número de casos pendentes de 2019 é próximo ao de 2015. Esse é o segundo ano consecutivo de queda no número de casos pendentes.