Os sistemas de justiça dos países de common law e de civil law nunca estiveram tão interrelacionados como na atualidade, em decorrência do processo de globalização que também afeta o Direito. A aparente incompatibilidade entre os referidos sistemas, tradicionalmente fundamentada em supostas e inconciliáveis visões de mundo, cede espaço, senão à miscigenação, à uma gradativa e possível aproximação dos dois mundos.
Muito embora subsistam profundas diferenças entre os referidos sistemas, oriundas de diversidades estruturais de ordem sócio-cultural, política, ideológica e econômica dos Estados que as conceberam e desenvolveram, a reciprocidade das influências entre os sistemas de common law e de civil law cresce gradativamente, na exata medida das constantes e nem sempre tranquilas revisões a respeito dos limites a serem observados pelo Estado na regulação das relações sociais e, por consequência, dos papeis a serem desempenhados pelo Parlamento e pelo Poder Judiciário no processo de criação e afirmação do Direito.
Como resultado dessas tensões, por um lado, percebe-se uma inevitável tendência de jurisprudencialização dos países regidos pelas codificações de tradição romano-germânica. A partir da (re)visão segundo a qual os magistrados não devem ser apenas la bouche de la loi, resumindo-se à revelação da vontade do legislador, a atividade jurisdicional dos Estados constitucionalizados passa ser compreendida não apenas como de natureza declaratória do Direito, mas, também, verdadeiramente constitutiva ou integrativa das normas jurídicas.
Por outro lado, o sistema de common law, forjado fundamentalmente pelos precedentes jurisdicionais vinculantes para casos similares futuros, passou a assimilar a necessidade de se pautar cada vez mais em regras oriundas do Parlamento, na medida do florescimento e da profusão das grandes Democracias do século XX, e no intuito de garantir a segurança jurídica e a estabilidade das relações sociais.
De toda forma, como já antecipou o amigo Nelson Rosenvald em sua coluna inaugural desse formidável espaço de debates aberto pelo Migalhas a respeito do Direito Privado no Common Law, as diversidades internas existentes nos sistemas de justiça dos países de tradição anglo-saxônica e romano-germânica sequer autorizam a que se aluda a modelos uniformes de common law e de civil law. Tanto do ponto de vista substancial como processual, é possível destacar inúmeras diferenças entre os sistemas de justiça inglês e norte-americano, ou entre os sistemas de justiça brasileiro, italiano, alemão e francês.
Por isso, talvez a melhor (senão única) forma de aproximação entre o common law e o civil law na atualidade envolva uma análise a respeito da tradição e da experiência dos diversos países neles inspirados, que lhes permitiu a construção de modelos próprios cuja lógica, razoabilidade e funcionalidade devem despertar os atentos olhares da academia no intuito do constante redimensionamento dos sistemas de justiça.
É precisamente nesse sentido que pensamos em abordar nessa coluna a temática proposta: a tradição e a experiência dos países de common law na edificação dos fundamentais institutos do Direito Privado e suas possíveis implicações ou aplicações nos países de civil law – em especial, no sistema de justiça brasileiro.
Trata-se de desafio que em muito transcende a repetição de estereótipos que parecem, a um primeiro e precipitado olhar, inviabilizar ou desaconselhar possíveis aproximações entre referidos sistemas no campo das relações privadas. O fenômeno da globalização e a realidade sócio-política da contemporaneidade nos revela, a cada dia, não ser possível contrapor diametralmente os valores historicamente a eles atribuídos, como se inconciliáveis fossem.
Bom exemplo dessa estereotipia pode ser simbolizado pela relutância dos países de civil law em fazer uso de ferramentas hermenêuticas derivadas do common law, como a Análise Econômica do Direito, ainda reputada por muitos como avessa aos primados da justiça e da adequada tutela dos direitos, prometidas pelos Estados Sociais.1
Como nas próximas colunas procuraremos demonstrar, não se trata de colocar em questão a correção ou a propriedade dos postulados da Análise Econômica do Direito formulados pela neoclássica “Escola de Chicago”, fundada nas doutrinas de George Stigler,2 Milton Friedman3 e Richard Posner4, dentre outros. Trata-se de investigar, na verdade, sua possível prestabilidade para, afastados os exageros utilitaristas5, também informar critérios para a (re)estruturação dos sistemas jurídicos dos países de tradição civilista.
Nesse sentido, há inúmeras pautas ainda a serem exploradas pelo civil law a partir da análise econômica do Direito. Dentre elas, como destaca o professor lusitano Fernando Borges Araújo, estão: a teria econômica da propriedade, a teoria econômica do contrato, a teoria econômica da responsabilidade civil, a teoria econômica da família, a teoria econômica do trabalho, a teoria econômica da empresa e a teoria econômica dos mercados financeiros.6
O legislador brasileiro vem demonstrando não apenas simpatia, mas uma surpreendente sintonia com o movimento da Law & Economics. Ao menos é o que deflui da ainda recente alteração da Lei de Introdução das Normas do Direito Brasileiro (Lei nº 13.665/2018), bem como da edição da Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019), cujas disposições traduzem a internalização de alguns dos mais básicos referenciais teóricos preconizados por referido movimento, tais como os da racionalidade, da economicidade e da eficiência.
Ainda no campo legislativo, a institucionalização dos mecanismos de solução extrajudicial dos conflitos por via das alternative dispute resolution abriu caminho para uma tardia, mas necessária consagração de um novo modelo de justiça multiportas no país. A conciliação, a mediação, a negociação e a arbitragem, ferramentas há muito operadas nos países de common law (especialmente nos Estados Unidos da América) e que nasceram e se desenvolveram sob o signo do direito privado, passaram a constituir temas fundamentais para o sistema de justiça nacional, a partir do novo código de processo civil (Lei nº 13.105/2015), da Lei de Mediação (Lei nº 13.140/2015) e da reforma da Lei de Arbitragem (Lei nº 13.129/2015).
O movimento da justiça multiportas objetiva não apenas um pragmático desafogamento do sistema jurisdicional – que pode ser considerado muito mais seu efeito do que sua causa propriamente dita. Muito mais do que isso, a desjudicialização traz consigo uma clara concepção de empoderamento da sociedade civil e de gradativa diminuição da intervenção do Estado para a resolução dos conflitos sociais.
Ainda que o incentivo à utilização das ADR’s constitua política controversa mesmo nos Estados Unidos da América7, a profusão dos mecanismos privados de resolução de disputas já constitui uma realidade em diversos países de civil law. A edição da Diretiva nº 52/2008, pelo Parlamento Europeu, implementou a mediação transfronteiriça em matéria civil e comercial, implicando, subsequentemente, processos legislativos de internalização de mecanismos de solução consensual de disputas pelos diversos países membros da União Europeia.
Muito embora no Brasil a cultura dos acordos ainda seja notavelmente tímida (segundo os últimos dados fornecidos pelo relatório Justiça em Números, publicado pelo Conselho Nacional de Justiça, a média geral dos acordos realizados pelo Poder Judiciário no ano de 2018 alcançou modestos 11,5% de todos os feitos pendentes)8, tudo indica que, a médio prazo, a predileção pelas soluções consensuais dos conflitos implicará profundas alterações no sistema de justiça nacional, em especial, na própria forma de atuação dos seus operadores (Ministério Público, Defensoria Pública, Advocacia Pública e Privada, Magistratura).
Por outro lado, a análise comparada entre os sistemas de justiça que pretendemos levar adiante nesse espaço do Migalhas é, de certa forma, incentivada pelo tratamento que a doutrina e a jurisprudência nacional já vêm dando a temas tradicionais do common law – por vezes, sequer ainda respaldados por lei expressa em nosso ordenamento jurídico.
É o caso, por exemplo, dos restitutionary e dos punitive ou exemplary damages, que já vêm sendo debatidos no Brasil, em alguma medida, por via da funcionalização restitutiva (disgorgement) e punitivo-pedagógica da responsabilidade civil, respectivamente.
De se ressaltar, ainda, os incessantes e difíceis debates a respeito das limitações às garantias da livre iniciativa e da autonomia privada, que permitiram às grandes Democracias Constitucionais do século XX a imposição de processos de funcionalização social de clássicos institutos do direito privado, tais como a posse, a propriedade, os contratos e a empresa.
A análise histórica a respeito da edificação de referidas garantias como alicerces inatacáveis e inatingíveis do sistema do common law não se presta apenas a fornecer lenha para as fogueiras de cansativos e improdutivos debates ideológicos aos quais estamos todos expostos, a todo tempo e em todo lugar.
Muito além e acima disso, trata-se de investigação que autoriza sérias e profundas reflexões a respeito do presente e do futuro tratamento que os sistemas de justiça podem ou devem dispensar ao Direito das obrigações, aos contratos, a responsabilidade civil, às relações de trabalho, às relações consumeristas, ao Direito das famílias, ao planejamento do fim da vida e das sucessões, dentre outros temas tão caros à tradição do Direito privado.
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1 Explicando a inaplicabilidade da análise econômica do direito preconizada por Richard Posner no Brasil, em função de o modelo constitucional voltar-se a outros escopos que não simplesmente a busca da eficiência alocativa, FORGIONI, Paula A. Análise Econômica do Direito: paranoia ou mistificação. Revista de Direito Mercantil Industrial, Econômico e Financeiro, v. 139, p. 242-256, 2005.
2 STIGLER, George J. The Theory of Price. 3ª ed., New York: Macmillan, 1966.
3 FIREDMAN, MILTON. Capitalism and freedom. Chicago: University of Chicago Press, 1982.
4 POSNER, Richard A. The Economics of Justice. Cambridge: Harvard University Press, 1983.
5 “El padre del utilitarismo, sin perjuicio de la existência de precursores próximos – alguns moralistas britânicos – y remotos – los epicúreos -, fue Bentham (1748- 1832). Fue él quien hizo famoso principio ‘dela mayor felicidad’, principio ‘de utilidad’. (…) El utilitarismo es supremamente paragmático acerca del valor de todas las cosas particulares que la gente hace, busca y evita – belleza, reconocimiento, comida, amistad, ayuda mutua, decir la verdad, mentir, revancha, castigo, muerte-porque todas estas cosas son buenas o malas solo y em la medida en que ellas conduzcan o no al único bien soberano: placer o felicidad. La única dimensión moralmente significativa de las acciones es su utilidad”. ITURRASPE, Jorge Mosset. Cómo contratar en una economía de mercado. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 2005, p. 68.
6 Araújo, Fernando. Análise económica do direito: programa e guia de estudo. Coimbra: Edições Almedina, 2008, p. 50-58.
7 Sobre os riscos ao efetivo acesso à justiça, possivelmente acarretados pela massificação do uso das alternative dispute resolution nos Estados Unidos da América, obrigatória a leitura do icônico artigo de Owen Fiss: Against Settlement. 93 Yale Law Journal, 1984.
8 Relatório Justiça em Números publicado em 2019, referentemente a dados coletados em 2018, disponível no site clique aqui.
9 A respeito da viabilidade da aplicação da teoria do disgorgement no Brasil, vide a excelente obra de Nelson Rosenvald, A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo. Salvador: Editora Juspodium, 2019. A função punitivo-pedagógica da responsabilidade civil será objeto de futura análise nessa coluna.